2008/04/19

The Blooming Tower

NUNCA É TARDE PARA APRENDER: TAKFIR (تكفي)

Lawrence Wright, The Looming Tower : Al Qaeda's Road to 9/11, Penguin Books, 2007

Este excelente livro (de que penso existe uma recente tradução portuguesa que desconheço) é o exemplo, mais um, da qualidade do jornalismo de investigação americano, que está longe de ser apenas jornalismo, mas uma fusão do trabalho na imprensa com instituições, universidades, centros de investigação, de que resultam livros como este. The Looming Tower é uma narrativa factual, daí a parte jornalística no sentido nobre, da criação e desenvolvimento da Al Qaeda, uma biografia de Bin Laden e dos outros membros proeminentes da organização, e um retrato do contexto cultural, político e religioso que criou e alimenta o terrorismo fundamentalista islâmico.

Para quem está habituado a ler escritos preguiçosos sobre o fundamentalismo islâmico, é um prazer ir com este livro mais longe. A preguiça intelectual irmana hoje os que condenam todo o Islão, todo o mundo muçulmano por ideias e práticas de uma "vanguarda", no perfeito sentido leninista, fundamentalista e radical; como aqueles que usam a Al Qaeda para demonizar a política americana, que seria, em última instância, a responsável, quando não a "criadora" de Bin Laden e da organização terrorista. A repetição ad nauseam destas asneiras pode ser politicamente instrumental, mas nem por isso deixam de ser asneiras.

O livro de Wright mostra como as ideias da Al Qaeda se formaram na conjugação de uma série de "fundamentalismos", em particular a obra e a acção de Sayyd Qutb, transportada para o meio saudita pelo grupo egípcio de Zawahiri, na experiência afegã de luta contra os soviéticos e depois no contexto da disseminação de várias concepções, entre o político e o teológico, pelas redes de mesquitas e madrassas de Londres a Kuala Lumpur, como o "takfirismo", a generalização da prática de proclamar alguém "cafre" (kafir, افر ), ou seja, fora do Islão, apóstata, infiel, logo passível de ser morto. O "takfirismo", importado do Egipto e da Argélia, deu às discussões da Al Qaeda o argumento teológico que lhe permitia matar indiscriminadamente homens, mulheres e crianças, inclusive muçulmanos.
A personagem principal deste livro, menos aliás do que se poderia supor, é Bin Laden. O milionário saudita que, à data em que se iniciam as actividades terroristas da Al Qaeda, já não o é, aparece como uma personagem cinzenta, uma daquelas personagens na história que é decisiva em muitos momentos, mas que parece a maioria das vezes ser um pano de fundo para uma sucessão de eventos de que é mais testemunha do que autor. Em bom rigor, o livro de Wright atribui-lhe dois papéis chave, em momentos e circunstâncias diferentes, no "caminho" para o 11 de Setembro: um, o seu papel como financiador por conta própria ou alheia (dos americanos e dos sauditas) da guerrilha afegã contra a invasão soviética, e na viragem da Al Qaeda para os alvos americanos, num processo de globalização do terrorismo, das Filipinas a Nova Iorque, sem precedente. Quando assume o segundo papel, já está longe do primeiro, porque Bin Laden fica numa situação de quase penúria quando tem de sair do Sudão para o Afeganistão e a família real saudita lhe tira a mesada da firma familiar e a nacionalidade saudita. Nesse momento, a Al Qaeda, que é ainda uma organização de acolhimento e suporte para os fundamentalistas combatentes de todo o lado do mundo, e que funcionava mais como organização "social" do que como organização terrorista, evolui para o que é hoje.

Contrariamente ao que se repete por todo o lado, o papel dos americanos em "fazer" Bin Laden é muito pequeno. A maioria dos guerrilheiros que combateram no Afeganistão pouco tinham a ver com Bin Laden e os seus "árabes afegãos", cuja capacidade militar desprezavam, e que eram muito mais activos em discussões religiosas em Peshawar no Paquistão, do que a lutar na frente de batalha. E o perfil de Bin Laden é um puro produto do Islão saudita, preso numa religiosidade medieval, e ao mesmo tempo capaz de uma total modernidade na utilização das novas tecnologias. Lawrence da Arábia conheceu gente desta, gente do deserto, religiosa, contemplativa, "poética" num certo sentido, hábil na falcoaria, ladrões de estrada, cruéis chefes de tribos, corajosos, e fáceis de introduzir aos explosivos, detonadores, sabotagem e afins.

Bin Laden é daquelas personagens com intensa fé religiosa que "melhora" na adversidade mais extrema. Rigoroso, cumpridor sem falha do estrito programa de vida que se impôs, vivendo uma vida ascética, a que apenas a paixão árabe pelos cavalos dá alguma cor, juntou à sua volta gente muito diferente mas que controla mais pelo exemplo do que pelo poder. E este é o perfil típico de um homem muito, muito perigoso.
Wright abre o livro com Sayyd Qutb nos Estados Unidos, entre Nova Iorque, Washington e uma pequena cidade do Colorado, no final dos anos quarenta. Um intelectual egípcio, já com mais de quarenta anos, tímido e solitário, desenvolve uma relação de repulsa pelo mundo americano quase visceral. Nos textos sobre a sua experiência nos EUA há todo o caldo de cultura de uma recusa moral do mundo americano, uma análise devastadora de terra sem fé (Wright nota como essa percepção é a oposta à que os europeus tem dos EUA, terra do Bible Belt, onde as notas de dólar tem inscrito In God We Trust), presa a valores materiais, corrupta, injusta, fascinado pelo dinheiro, pelo sucesso e pelo pecado. Este retrato de Qutb da América é muito próximo da demonologia comunista anti-americana, mas também de muitos intelectuais europeus, como Aldous Huxley, por exemplo, que achava que os americanos queriam construir uma sociedade conformista e normalizada, onde Our Lord seria substituído por Our Ford. Qutb acrescenta a esta reacção uma profunda misoginia, uma mistura de ódio e de pavor face às mulheres, que aparecem sempre como sedutoras e fonte do pecado, numa atitude não muito distinta da descrição das mulheres como "vasos de corrupção" em certos autores cristãos.

Para manter íntegro o seu mundo, Qutb lê exaustivamente o Corão lançando as bases de uma obra que nos anos cinquenta em diante vai inspirar gerações de jovens muçulmanos e que vai ser levada para dentro da Al Qaeda pelo grupo egípcio de Zawahiri, talvez mais importante do que o próprio Bin Laden na definição de um quadro político-religioso na organização. Na sua obra mais conhecida Marcos na Estrada (Ma'alim fi al-Tariq, معالم في الطريق) e nos seus comentários ao Corão, Na Sombra do Corão (Fi Zilal al-Qur'an في ظِلالِ القرآن), Qutb lançou as bases do fundamentalismo islâmico, em particular a ideia da necessidade do retorno a uma "comunidade muçulmana que de há muito desapareceu":

"um grupo de pessoas cujos costumes, ideias e conceitos, regras e leis, valores e critérios, derivam todos de uma fonte islâmica. Uma comunidade com estas características desapareceu no momento em que as leis de Deus foram suspensas na terra."
A restauração desta "comunidade" tornou-se o programa dos militantes muçulmanos radicais que, no Egipto, na Arábia Saudita, no Yemen, no Sudão, na Argélia, no Paquistão e no Afeganistão se foram agregando à volta de um saudita milionário Bin Laden, que tivera um papel fundamental na canalização dos fundos sauditas e americanos para apoiar a guerra contra os invasores soviéticos no Afeganistão. Tudo isto aconteceu depois de Qutb ter sido um "mártir" ele próprio, procurando o martírio na recusa absoluta de qualquer gesto que o poupasse a ser condenado à morte e enforcado no Egipto em 1966.
A personagem principal deste livro, menos aliás do que se poderia supor, é Bin Laden. O milionário saudita que, à data em que se iniciam as actividades terroristas da Al Qaeda, já não o é, aparece como uma personagem cinzenta, uma daquelas personagens na história que é decisiva em muitos momentos, mas que parece a maioria das vezes ser um pano de fundo para uma sucessão de eventos de que é mais testemunha do que autor. Em bom rigor, o livro de Wright atribui-lhe dois papéis chave, em momentos e circunstâncias diferentes, no "caminho" para o 11 de Setembro: um, o seu papel como financiador por conta própria ou alheia (dos americanos e dos sauditas) da guerrilha afegã contra a invasão soviética, e na viragem da Al Qaeda para os alvos americanos, num processo de globalização do terrorismo, das Filipinas a Nova Iorque, sem precedente. Quando assume o segundo papel, já está longe do primeiro, porque Bin Laden fica numa situação de quase penúria quando tem de sair do Sudão para o Afeganistão e a família real saudita lhe tira a mesada da firma familiar e a nacionalidade saudita. Nesse momento, a Al Qaeda, que é ainda uma organização de acolhimento e suporte para os fundamentalistas combatentes de todo o lado do mundo, e que funcionava mais como organização "social" do que como organização terrorista, evolui para o que é hoje.

Contrariamente ao que se repete por todo o lado, o papel dos americanos em "fazer" Bin Laden é muito pequeno. A maioria dos guerrilheiros que combateram no Afeganistão pouco tinham a ver com Bin Laden e os seus "árabes afegãos", cuja capacidade militar desprezavam, e que eram muito mais activos em discussões religiosas em Peshawar no Paquistão, do que a lutar na frente de batalha. E o perfil de Bin Laden é um puro produto do Islão saudita, preso numa religiosidade medieval, e ao mesmo tempo capaz de uma total modernidade na utilização das novas tecnologias. Lawrence da Arábia conheceu gente desta, gente do deserto, religiosa, contemplativa, "poética" num certo sentido, hábil na falcoaria, ladrões de estrada, cruéis chefes de tribos, corajosos, e fáceis de introduzir aos explosivos, detonadores, sabotagem e afins.

Bin Laden é daquelas personagens com intensa fé religiosa que "melhora" na adversidade mais extrema. Rigoroso, cumpridor sem falha do estrito programa de vida que se impôs, vivendo uma vida ascética, a que apenas a paixão árabe pelos cavalos dá alguma cor, juntou à sua volta gente muito diferente mas que controla mais pelo exemplo do que pelo poder. E este é o perfil típico de um homem muito, muito perigoso.
Um dos temas deste livro é a análise dos erros da intelligence americana em aperceber-se do risco de um atentado em território americano, principalmente pela compartimentação da informação entre a CIA e o FBI. Com base nos dados que Wright utiliza é mais a CIA que aparece como responsável da sonegação de informação vital, que o FBI. Este poderia ligar os dados que a CIA tinha da presença de um grupo da Al Qaeda em território americano com outras investigações em curso, e, eventualmente, desmantelar a conspiração do 11 de Setembro, se eles lhes fossem fornecidos. Embora nunca se saiba até que ponto as coisas aconteceriam de diferente se, os inquéritos realizados levaram a uma maior coordenação de todas as agências de informação em matérias do terrorismo. O livro de Wright dispersa-se um pouco nesta parte ao cair na tentação de personalizar a história no agente do FBI John O'Neill, que morreu no atentado, numa tradição jornalística de "contar as histórias" com base em protagonistas, que aqui não resulta. Mas, com esta excepção, trata-se da melhor introdução jornalística ao fundamentalismo muçulmano da Al Qaeda.

Veja-se a crítica de Eduardo Pitta ao livro.

E a confirmação por vários leitores da edição portuguesa cuja capa coloco aqui.

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