2008/06/22

O Europeu de Futebol

O Ferreira Fernandes, jornalista do DN foi, no sei geito peculiar, cronicar na Suíça o Europeu.

Transacrevem-se aqui as ditas crónicas

NA PRÓXIMA SEREI MAIS CIENTÍFICO

Passei o dia a ler sinais. Tinha-me deitado com a Lua cheia, redonda de perfeição: "Bom augúrio, para quem é bom de bola..." Ontem foi o segundo dia seguido de sol. Sol rima com quê? Com o Funchal de quem vocês sabem ou com a Saxónia de Ballack? Entrei no estádio de Basileia e olhei a pista de dança. A esta hora, quando me lêem, já todos viram as centenas de rectângulos em que a UEFA converteu o relvado. Pedaços de esmeralda rasgados por clareiras de capim... Mau sinal? Claro que não. Se esses rectângulos estivessem marcados - 1, 2... 57... 84...179... - preocupava-me. Os alemães entravam com a coisa estudada, ao minuto 25, como combinado, Lahm, no rectângulo 143, centrava para o rectângulo 207, onde Klose esperava... Mas não, os rectângulos confundiam-se, estavam ao calhas. Eu disse a expressão sagrada: ao calhas. Ao calhas não de totós, mas de quem inventa no momento. Concluí: ontem era o nosso dia. Concluí mal, como sempre quem lê em vísceras fumegantes.|20

FAVORITOS ESSA É QUE É ESSA

A frase é batida: "Futebol é um jogo entre 22 jogadores, em que no final quem vence é a Alemanha." Disse-a um jogador inglês, Gary Lineker, traumatizado pelos panzers do relvado nos anos 70/80. É frase exagerada, claro, mas com argumentos: a Alemanha foi campeã mundial (3 vezes), vice-campeã (4), campeã europeia (3) e vice- -campeã (2). Uma vez, entrou completamente batida - final do Mundial de 54, contra a maravilha dos húngaros (que a tinham derrotado, dias antes, por 8-3) - e saiu do campo campeã e com o trauma da derrota da II Guerra Mundial resolvido. Essa é a Alemanha e o seu jogo preferido (tem 16 milhões de futebolistas, entre profissionais e amadores, 30 vezes mais que Portugal). Essa, a Alemanha que joga hoje com Portugal. O seu melhor jogador, Ballack, diz: "Portugal é o favorito." Dir-me-ão: é só frase. Sim, mas ao contrário da frase de Lineker, nunca tinha sido dita, nunca. Talvez essa glória só a vivamos até logo à noite. Mas que isso foi dito, foi.|19

SOBERBA COMO QUALIDADE DESPORTIVA

Estranha Holanda: não quis despachar um adversário perigoso. Os holandeses podiam ter pensado que o jogo de ontem (com a Roménia, 2-0) não era de 90 minutos, mas de 180 - acrescentando o jogo da semifinal. Ontem, bastava-lhes ter perdido (o que não beliscava o seu 1.º lugar no grupo), e ter-se- -iam livrado ou da França ou da Itália mais para a frente. Mas os holandeses eliminaram a Roménia e deram mais uma oportunidade ao vencedor do França-Itália (foi a Itália). Isto é, preferiram arriscar-se a encontrar outra vez a forte Itália (caso esta passe, nos quartos-de-final, a Espanha), preferiram isso, a apostar na sorte de encontrar outra vez a modesta Roménia (que teria seguido em frente se ontem tivesse ganho). A Holanda fez essas contas, mas, apesar delas, ganhou. Porquê? Porque a Holanda não queria um jogo combinado? Acho que a resposta é outra e igualmente admirável: a Holanda tem a soberba de se saber melhor do que qualquer adversário, seja este qual for.18







AQUILO É MUITA HISTÓRIA MÁ HISTÓRIA

O estádio do Prater, em Viena. A gente julga serem só pedras, mas que alguma coisa as habita, habita. Aquilo é muita história. Mudam-lhe o nome, agora é estádio Ernst-Happel, o grande treinador que dizia aos seus que subiam ao relvado: "Cavalheiros, três pontos." Mas o estádio continua o Prater. A história é muita. Em 1938, celebrou-se ali o Anschluss, a ocupação da Áustria pelos nazis alemães: juntaram-se as duas selecções. À equipa da Áustria chamavam-lhe "o time maravilha"; ao capitão, Matthias Sindelar, "o Mozart do futebol". Sindelar recusou- -se a alinhar pela Alemanha: ele e a mulher, Camilla Castagnola, suicidaram-se. Em 1939, no campo do Prater, a Gestapo mediu 440 judeus, depois mandou-os para Buchenwald. Ontem, o árbitro esqueceu-se dos jogadores e expulsou os dois treinadores, o alemão e o austríaco. Angela Merkl levantou-se para apoiar e falar ao seu treinador. Não devia. Mesmo passados 70 anos, os alemães deviam ser discretos. Pelo menos, no Prater.17

NO FUTEBOL NINGUÉM LEVA A MAL

A caminho do futebol, Cressier, uma aldeia da montanha, rua central deserta, é a Suíça ao domingo. Entro no hotel Croix-Blanche, quero almoçar: "Hoje não servimos, oferecemos." Conduzem- -me ao terraço traseiro. Há festa, com banda de sopro, presunto fumado e rosé da região. É gente do campo que se desfaz em sorrisos para o estrangeiro e aplaude-me por ser português. Gritam pelo patrão: José Ferreira, de Trancoso, com blusa de cozinheiro, comemora com os vizinhos a sua chegada, há 20 anos. Bebo, como e sou feliz. Despeço-me e peço desculpa pela vitória de mais logo. (Julgava eu...) Sentia-me Obdulio Varela. Sabem, o capitão do Uruguai que derrotou o Brasil, no Maracanã, em 1950. Depois do jogo, sozinho, ele entrou pela noite do Rio. Numa tasca, pediu uma cerveja e reconheceram- -no. Temeu ser agredido. E foi: um jovem chorou-lhe, ao ombro, toda a tristeza do Brasil. Só então, Varela se deu conta do mal que fizera. E estava disposto a repetir. No futebol até as tristezas são boas.16

Ó P'RA MIM CÁ EM CIMA

Não se gosta de uma equipa porque ela é a boa, mas porque ela é a nossa. Depois de ela ser a nossa, quando a ligação já tem memória e essas coisas, então, vamos descobrir as razões porque ela é a boa. Encontram-se sempre.

A questão é, pois, a inicial: porque é aquela a nossa equipa? Eu conheço a minha razão. Até porque a minha equipa é Portugal e quando a minha equipa começou a ser Portugal - falo do início dos anos 60 - Portugal era a última coisa que me embalava. A minha razão: Coluna. Um não branco a mandar em brancos. Um capitão, patrão inquestionável, coisa que se via das bancadas: "Sr. Coluna, posso ser eu a marcar o livre?", perguntava um rapaz pálido. E o Sr. Coluna deixava, ou não.

Não queiram saber como aquilo era ar fresco. A selecção portuguesa desse tempo era como a Nokia hoje para a Finlândia - por ela, o mundo talvez não soubesse, mas adivinhava a modernidade. Talvez não nos invejasse, mas devia. Foi nessa altura que me tornei adepto da equipa. Lembro, naquele tempo não havia negros a jogar na Europa: Didi, um mestiço como Coluna, um dos três deuses da melhor equipa de sempre (Brasil, 1958, com Garrincha e Pelé), saiu do Real Madrid empurrado por vexames racistas.

Outros têm as sua razões para amar a equipa. A mão de um pai que nos levou ao Jamor... O importante é ficarmos com esse sentimento de pertença. Fixados, coleccionam-se momentos, como outros, cromos. No meu passaporte de cidadão da selecção nacional, o carimbo mais querido é, claro, o daquele Portugal-Coreia, Mundial de 66. Mais uma vez, amei Portugal quando ele se revelava nos antípodas de Portugal. Os 9 999 999 portugueses desalentados com o 0-3, e um português de raça decidido a mudar o destino. Eusébio carregando o País às costas deu a volta ao resultado, negando-se a abraços até à epopeia concluída. Nunca chorei tão bom.

Depois disso, o meu affaire com a selecção nacional têm sido chispas, meras chispas - Futre e Chalana, Figo e Rui Costa e, até, Ricardo, o dos penáltis. Sempre acreditando tudo, sabendo que teria pouco. A selecção era como aquela amante feia de quem só nós sabemos das qualidades e não dá para apregoar. Um affaire íntimo.

E não é que cheguei a esta selecção? A do Deco inclinado para a frente e do Cristiano Ronaldo inclinado para trás (só um apaixonado vê estes pormenores), que a Europa deu em invejar? Confesso, não sei como lidar com a situação. Não sou dos que pintam a cara e usam chapéus bizarros, sou dos que amam baixinho. Mas quando colegas de L'Équipe e de La Gazzetta dello Sport olham para mim como eu olho para o namorado da Scarlett Johansson, confirmo: "Sim, eu ando com esta equipa já há muitos anos..." E ponho um ar ainda mais discreto porque já apanhei as manhas dos poderosos.16
PROFISSÃO: DESPACHAR PEDANTES


Titulava ontem o jornal francês L'Équipe: "É preciso mexerem-se!" Ora, mesmo no curling - aquele jogo em que o mais emocionante é ver varrer o gelo -, todo o desporto é definido por um mexer qualquer. Quando o mais prestigiado jornal desportivo da Europa dá um conselho óbvio aos seus, coitados dos seus. E mais coitados, ainda, quando eles seguem o conselho: a França mexeu-se. Atitude imprudente quando Thuram tem 36 anos e Makelele, 35, idades em que os grandes futebolistas já são maus comentadores televisivos. A França seguiu a batuta da sua barata tonta Ribéry, o que é grave, sempre, e mortal quando do outro lado estava a que, ontem, era a melhor equipa do mundo. Para esta, a Holanda, um só senão: habituou-nos a ganhar por diferença de três golos. Um dia, ganha por 2-0 e a equipa interioriza a derrota. Faz lembrar, ao contrário, Paulo Portas: as sondagens dão-lhe 3%, ele acaba por ter 5% e faz a vida política com isso. A Holanda merece melhor destino.14
GEOESTRATÉGIA ENTRE QUATRO LINHAS


Dois países organizam o Euro durante cinco anos. A Suíça, ao fim de quatro dias, é eliminada. A Aústria, no último minuto, ontem, recebeu um suplemento de mais uns diazitos. Ela vai ter de vencer a Alemanha, que tem de jogar para um empate. No futebol, o conflito de interesses germano-austríaco é novidade. São históricos os conluios. Umas vezes, conversados, como no Mundial de 1982. Precisavam ambas do 1-0 a favor da Alemanha, o que faria passar as duas - fez-se esse resultado aos dez minutos e nos outros 80 trocaram a bola entre assobios dos espectadores e a raiva da prejudicada, a Argélia. De outra vez, a conivência foi imposta e retumbante: antes do Mundial de 1938, a Alemanha anexou militarmente a Áustria e, de passagem, anexou-lhe cinco jogadores para a sua selecção. Não valeu de nada: a Alemanha com reforço austríaco foi eliminada. Por coincidência, por esta triste Suíça, que acaba de ser convidada a sair da festa que se realiza em sua casa.
OS HINOS O POSTE E O ARTISTA



A suíça Mireille Grosjean pôs um processo à UEFA, responsável do Euro 2008, por causa dos hinos: "Incitam à violência." Não falou do nosso "Às armas! Às armas", estava mais indignada com o "sangue impuro" referido na Marselhesa. Ontem, no estádio de Genebra, notei que Nuno Gomes se engasgou no "egrégios avós" e pareceu-me arrevesado o "domov nuj" dos checos. Um tropeço para cada lado - é o que exijo ao desporto: a igualdade à partida. Por isso, a UEFA, a ter de banir alguma coisa, são tipos tipo Koller, de 2,02 metros. Se permitem pilares de electricidade, mesmo sem fios, um dia vamos admitir guarda-redes superlutadores de sumo que entupam a baliza. Koller não jogou nada mas falo como amante da arte (da Art Deco em particular): não gosto de futebol armado ao pingarelho. Logo que um checo pegava na bola, tratava de a fazer pingar para o poste. Isso distraía do essencial, do que se passava 25 centímetros abaixo. Ao alto nível dos 1,77 m de Deco. 13

O FUTEBOL É MAIS DO QUE BOLA A ROLAR


Quando foi à Suíça para o dia inaugural do Euro, Durão Barroso citou Roman Gary: "Patriotismo é gostar dos seus, nacionalismo é odiar os outros." Roman Gary era polaco, como esse Lukas Podolski que joga na selecção alemã e marcou golo contra a Polónia dos seus pais. Gary nunca combateu contra a Polónia, mas combateu por outras pátrias: foi companheiro de De Gaulle na libertação de França. Sob o pseudónimo de Émile Ajar, escreveu um dos mais comoventes livros da minha vida, La Vie devant Soi - uma velha judia e um pequeno árabe, em Pigalle. Gary compreenderia Podolski, o do golo contra a pátria de ambos. Porque o futebol é lugar de patriotismo e o patriotismo permite outros patriotismos, até para si próprio. No estádio de Genebra, antes do Portugal-Turquia, viu-se na tela o golo checo contra a Suíça. A bancada dos imigrantes emudeceu de tristeza. Os portugueses da Suíça são como Podolski e sabem- -no. O futebol ensina-nos que pátria não há só uma.12
A TOLICE DA MECÂNICA DA LARANJA


É extraordinário que o tão aleatório futebol seja fiel aos seus costumes. Sobretudo quando estes são do tipo sem explicação. O futebol tem fantasmas e não consegue fugir deles. Olhem a Itália e a sua mania de alpinista, que já aqui evoquei e começou, ontem, a confirmar-se. Nos Mundiais, de 12 em 12 anos, ela brilha: 1970 (finalista), 82 (campeã), 94 (finalista) e 2006 (campeã). Cume atingido, nos Euros seguintes a Itália vem por ali abaixo: em 1972, saiu nos quartos-de-final; em 84, nem lá foi (ficou-se nas eliminatórias); em 96, caiu na fase de grupo. Em 2008, a tradição parece manter-se com a derrota de ontem. Mas chega de falar de comparsas, quando ainda nada se disse da admirável Holanda. Reparem que já comecei a respeitá-los: chamei-lhes Holanda. Como poderia ter dito Flechas Infernais ou Agarrem-nos Se Podem. O que nunca lhes chamaria é Laranja Mecânica. Laranja, da camisola, ainda vá lá. Agora, comparar aquela arte a coisa de bielas e manivelas...10

LER FUTEBOL É SABER MAIS


Na defesa central da selecção: Pepe e Carvalho (nós não usamos assim mas foi título do jornal L'Équipe). Quase como Pepe Carvalho, o célebre detective do escritor catalão Manuel Vásquez Montálban. O detective Pepe Carvalho resolve mistérios exóticos e ainda há pouco Pepe e Carvalho resolveram o caso dos turcos. Os nossos Pepe e Carvalho também caçam assassinos (que é o que deve ser um bom adversário naquela zona do campo) e, como Pepe Carvalho, fazem-no, não ao murro, mas pensando (sobretudo Carvalho, cirurgicamente, esticando o pé). Pepe Carvalho é gastrónomo, escolhe os ingredientes e cozinha-os filosoficamente. Pepe e Carvalho não gostam de ser comidos e, cumprindo uma filosofia (a melhor defesa é o ataque), gostam de comer os outros subindo à baliza deles. Pepe Carvalho queima os seus livros à lareira. Pepe e Carvalho quando abrem o livro incendeiam o jogo. Pepe Carvalho é um detective privado. Pepe e Carvalho estão em vias de ser monumentos públicos.9
OS REPESCADOS MOVEM-SE A CERVEJA


Nuno Herlander Simões Espírito Santo. Dinamarquês. Não olhem ao nome, mas à condição. O que é ser dinamarquês numa época destas? Numa época que começou ontem e acaba a 29 deste mês? Eu digo: é estar de férias, de papo para o ar mas triste, estendido na areia mas a sonhar com relva, não fazer nada e invejar os que fazem. É estar como os futebolistas da selecção dinamarquesa no fim da Primavera de 1992. Eles tinham perdido a qualificação para ir ao Euro desse ano, na Suécia. Estavam desolados porque, anos antes, tinham ganho um pseudónimo brilhante, Dinamáquina, e não podiam confirmá-lo.

Estavam assim os dinamarqueses - tendo os futebolistas escolhido o fim do mês de Maio para ir de férias. Foi então que a Jugoslávia se transformou no campeonato que se sabe e que Kusturica contou como ninguém. Na presunção de que um país que se retalha não merece ser metido numa só camisola, a UEFA desqualificou a Jugoslávia. E aquela que tinha partido pescar, a Dinarmarca, acabou repescada. Contactaram-se os futebolistas que andavam pelos quatro cantos do mundo, contaram-se os 23 necessários, disseram-lhes que eram uma equipa (não houve tempo para mais) e despacharam-nos para Gotemburgo. Nunca uma equipa chegou à fase final de um torneio internacional menos preparada e com mais olheiras.

Não sei onde estava Nuno, de 34 anos, o guarda-redes suplente do FC Porto, na sexta-feira passada (sei, estava no Algarve, mas isso é vulgar). Para a minha história convém-me que estivesse nas Maldivas. No tal papo para o ar e triste e baço. Felizmente para ele, tinha o telemóvel ao lado, pousado na toalha com palmeiras. Ouviu o toque e atendeu: "Menino - disse quem ele logo soube ser o Sargentão - tira os calções de banho e vem vindo logo."

Nas Maldivas estão habituados às manias dos turistas e ninguém ligou àquele rapagão que correu nu para o aeroporto - já sem calções de banho, como lhe tinha sido ordenado. E Nuno chegou, já hoje, à Suíça, ao Euro, tal como os dinamarqueses há 16 anos chegaram à Suécia, ao Euro. Que raio de Sarajevo terá acontecido para esta respescagem de Nuno? Calma, fala-se aqui de Portugal, selecção de brandos costumes. Não foi necessário derrubar a ponte de Mostar, nem encher valas de cadáveres, nem tornar popular a palavra sniper. Em Portugal, fazemos tudo mais barato: bastou o pulso de Quim.

Nuno Herlander Simões Espírito Santo, o dinamarquês, pois. Mas para o ser completamente, deixem-me lembrar mais. Os dinamarqueses, já que foram numa de por acaso, levaram a coisa na boa. Foram para um hotel de porta aberta, havia cerveja nos corredores e visitas das namoradas. No fim, foram campeões. Eu, se fosse o Scolari, deixava pelo menos o Nuno com essas regalias.8
ANÁLISE CALMA E PONDERADA



Se me perguntarem: "Onde vais?" Responderei: "Vou para a festa!" Sinto-me como quando desembarco em Nova Iorque, que é o mesmo que sentia o Fabrice da Cartuxa de Parma e o Eugène de Rastignac da Comédia Humana ao chegarem a Paris. É entre nós dois, Cristiano Ronaldo. O que não quer dizer que não te traia com o Nani. O que eu peço é só ser fascinado. Só. No ponto em que estou, não custa nada. Três fintas, uma delas daquelas que sentam um turco. Um golo num canto insuspeito. Uma bola domada no peito. Quero geometria, muita geometria, lusa geometria, passando tangentes aos outros, nunca secantes. Quero ver a garra de Petit, o único tipo com cara de ciclista que venceu no fute. Quero uma cavalgada de Bosingwa passando o Bósforo. Quero Ricardo Carvalho imperial como um otomano de antigamente. Quero só tudo. Deco parado a olhar. Se quando ele não olha faz maravilhas, imaginem quando um estádio pára, a Terra deixa de rodar e Deco olha. Quero vir da festa exausto.


NÃO, NÃO ACHEI QUE ELES EXAGERASSEM


Gosto do futebol jogado. Ronaldinho, o brasileiro, esperando que a barreira salte para ele enfiar a bola por baixo das infelizes solas do adversário dá-me satisfação pura. A selecção enquanto visitadora do Presidente já me deixa indiferente - quero lá saber do protocolo em geral e de rapazes mal engravatados em particular. Por outro lado, um Presidente amante de futebol que se emocionasse por abraçar aquele rapaz que lançou as luvas para o canto e resolveu um desafio que tinha o Portugal em suspenso, já me deixaria comovido. Como fiquei ao ver a emoção maluca dos portugueses de Neuchâtel. Volto ao futebol de que gosto: gostei de ver Ronaldinho a fazer aquilo porque desejei toda a minha vida fazê-lo e nunca soube. Gosto do futebol por ambição diferida: admiro quem sabe o que eu não sei. Compreendo bem os emigrantes que admiram portugueses que eles sabem que o mundo admira. Só não percebe o orgulho deles quem não sente necessidade de admirar.

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