2010/09/27

A Festa do Avante

Enviaram-me este texto supostamente escrito pelo MEC embora não seja referida a data nem onde foi publicado.
Pelo estilo atrevo-me a supor que sim que foi ele que escreveu, embora...
Um reparo descoberto pelo meu amigo Luís Botto.
13 de Setembro de 2007 foi uma quinta-feira e não um sábado como vem lá em baixo.

De qualquer modo assino por baixo o escrito.
Aqui vai:

*Artigo de Miguel Esteves Cardoso*.

“Dizem-se muitas mentiras acerca da Festa do Avante! Estas são as maispopulares: que é irrelevante; que é um anacronismo; que é decadente; que éum grande negócio disfarçado de festa; que já perdeu o conteúdo político;que hoje é só comes e bebes.
Já é a Segunda vez que lá vou e posso garantir que não é nada dessas coisase que não só é escusado como perigoso fingir que é. Porque a verdadeverdadinha é que a Festa do Avante faz um bocadinho de medo.
O que se segue não é tanto uma crónica sobre essa festa como a reportagem deum preconceito acerca dela - um preconceito gigantesco que envolve a grandemaioria dos portugueses. Ou pelo menos a mim.
Porque é que a Festa do Avante faz medo?
É muita gente; muita alegria; muita convicção; muito propósito comum.
Pode não ser de bom-tom dizê-lo, mas o choque inicial é sempre o mesmo:chiça!, Afinal os comunistas são mais que as mães. E bem dispostos. Porquêtão bem dispostos? O que é que eles sabem que eu ainda não sei?
É sempre desconfortável estar rodeado por pessoas com ideias contrárias àsnossas. Mas quando a multidão é gigante e a ideia é contrária é só uma só –então, muito francamente, é aterrador.
Até por uma questão de respeito, o Partido Comunista Português merece que setenha medo dele. Tratá-lo como uma relíquia engraçada do século XX é umadesconsideração e um perigo. Mal por mal, mais vale acreditar que comemcriancinhas ao pequeno-almoço.
BEM SEI QUE A condescendência é uma arma e que fica bem elogiar oscomunistas como fiéis aos princípios e tocantemente inamovíveis,coitadinhos.
É esta a maneira mais fácil de fingir que não existem e de esperar, com todaa estupidez, que, se os ignoramos, acabarão por se ir embora.

As festas do Avante, por muito que custe aos anticomunistas reconhecê-lo,são magníficas.
É espantoso ver o que se alcança com um bocadinho de colaboração. Não só nosentido verdadeiro, de trabalhar com os outros, como no nobre, que étrabalhar de graça.
A condescendência leva-nos a alvitrar que “assim também eu” e que as festasdos outros partidos também seriam boas caso estivessem um ano inteiro aprepará-las. Está bem, está: nem assim iam lá. Porque não basta trabalhar:também é preciso querer mudar o mundo. E querer só por si, não chega. Épreciso ter a certeza que se vai mudá-lo.
Em vez de usar, para explicar tudo, o velho chavão da “ capacidade deorganização” do velho PCP, temos é que perguntar porque é que se dão aotrabalho de se organizarem.
Porque os comunistas não se limitam a acreditar que a história lhes darárazão: acreditam que são a razão da própria história. É por isso que nãopodem parar; que aguentam todas as derrotas e todos os revezes; que sãodotados de uma avassaladora e paradoxalmente energética paciência; porqueacreditam que são a última barreira entre a civilização e a selvajaria. Etalvez sejam. Basta completar a frase "Se não fossem os comunistas, hoje nãohaveria..." e compreende-se que, para eles, são muitas as conquistasmeramente "burguesas " que lhe devemos, como o direito à greve e à liberdadede expressão.
É por isso que não se sentem “derrotados”. O desaparecimento da URSS, porexemplo, pode ter sido chato mas, na amplitude do panoramamarxista-leninista, foi apenas um contratempo. Mas não é só por isso que aFesta do Avante faz medo. Também porque é convincente. Os comunas não sósabem divertir-se como são mestres, como nunca vi, do à-vontade. Todos fazemo que lhes apetece, sem complexos nem receios de qualquer espécie. Até oshow off é mínimo e saudável.
Toda a gente se trata da mesma maneira, sem falsas distâncias nemproximidades. Ninguém procura controlar, convencer ou impressionar ninguém.As palavras são ditas conforme saem e as discussões são espontâneas eanimadas. É muito refrescante esta honestidade. É bom (mas raro) uma pessoasentir-se à vontade em público. Na Festa do Avante é automático.
Dava-nos jeito que se vestissem todos da mesma maneira e dissessem efizessem as mesmas coisas - paciência. Dava-nos jeito que estivessemeufóricos; tragicamente iluminados pela inevitabilidade do comunismo - masnão estão. Estão é fartos do capitalismo - e um bocadinho zangados.
Não há psicologias de multidões para ninguém: são mais que muitos, mas cadaum está na sua. Isto é muito importante. Ninguém ali está a ser levado oufoi trazido ou está só por estar. Nada é forçado. Não há chamarizes nemcompulsões. Vale tudo até o aborrecimento. Ou seja: é o contrário do que sepensa quando se pensa num comício ou numa festa obrigatória. Muito menoscomunista.
Sabe bem passear no meio de tanta rebeldia. Sabe bem ficar confuso.
Todos os portugueses haviam de ir de cinco em cinco anos a uma Festa doAvante, só para enxotar estereótipos e baralhar ideias.
Convinha-nos pensar que as comunas eram um rebanho mas a parecença é maiscom um jardim zoológico inteiro. Ali uma zebra; em frente um leão e umflamingo; aqui ao lado uma manada de guardas a dormir na relva.
QUANDO SE CHEGA à Festa o que mais impressiona é a falta de paranóia.
Ninguém está ansioso, a começar pelos seguranças que nos deixam passar sócom um sorriso, sem nos vasculhar as malas ou apalpar as ancas. Em matériade livre de trânsito, é como voltar aos anos 60.
Só essa ausência de suspeita vale o preço do bilhete. Nos tempos que correm,vale ouro. Há milhares de pessoas a entrar e a sair mas não há bichas. Acirculação é perfeitamente sanguínea. É muito bom quando não desconfiamos denós.
Mesmo assim tenho de confessar, como reaccionário que sou, que me passoupela cabeça que a razão de tanta preocupação talvez fosse a probabilidade detodos os potenciais bombistas já estarem lá dentro, nos pavilhõesinternacionais, a beber copos uns com os outros e a divertirem-se.
A Festa do Avante é sempre maior do que se pensa. Está muito bem arrumada aoponto de permitir deambulações e descobertas alegres. Ao admirar agrandiosidade das avenidas e dos quarteirões de restaurantes, representandoo país inteiro e os PALOP, é difícil não pensar numa versão democrática daExposição do Mundo Português, expurgada de pompa e de artifício. E desalazarismo, claro.
Assim se chega a outro preconceito conveniente. Dava-nos jeito que a festado PCP fosse partidária, sectária e ideologicamente estrangeirada. Naverdade, não podia ser mais portuguesa e saudavelmente nacionalista.
O desaparecimento da União Soviética foi, deste ponto de vista,particularmente infeliz por ter eliminado a potência cujas ordens eramcegamente obedecidas pelo PCP.
Sem a orientação e o financiamento de Moscovo, o PCP deveria ter tambémfenecido e finado. Mas não: ei-lo. Grande chatice.
Quer se queira quer não (eu não queria), sente-se na Festa do Avante!
Que está ali uma reserva ecológica de Portugal. Se por acaso falharem osmodelos vigentes, poderemos ir buscar as sementes e os enxertos para começartudo o que é Portugal outra vez.
A teimosia comunista é culturalmente valiosa porque é a nossa própriacultura que é teimosa. A diferença às modas e às tendências dos comunistasnão é uma atitude: é um dos resultados daquela persistência dos nossoshábitos. Não é uma defesa ideológica: é uma prática que reforça e eternizasó por ser praticada. (Fiquemos por aqui que já estou a escrever àcomunista).
A Exposição do Mundo português era “para inglês ver”, mas a Festa do Avante!Em muitos aspectos importantes, parece mesmo inglesa. Para mais, inglesa nosentido irreal. As bichas, direitinhas e céleres, não podiam ser menosportuguesas. Nem tão-pouco a maneira como cada pessoa limpa a mesa antes dese levantar, deixando-a impecável.
As brigadas de limpeza por sua vez, estão sempre a passar, recolhendo esubstituindo os sacos do lixo. Para uma festa daquele tamanho, com tantagente a divertir-se, a sujidade é quase nenhuma. É maravilhoso ver oresultado de tanto civismo individual e de tanta competência administrativa.Raios os partam.
Se a Festa do Avante dá uma pequena ideia de como seria Portugal semandassem os comunistas, confessemos que não seria nada mau. A coisa estátão bem organizada que não se vê. Passa-se o mesmo com os seguranças -atentos mas invisíveis e deslizantes, sem interromper nem intimidar umamosca.
O preconceito anticomunista dá-os como disciplinados e regimentados – secalhar, estamos a confundi-los com a Mocidade portuguesa. Não são nadadisso. A Festa funciona para que eles não tenham de funcionar. Ao contráriode tantos festivais apolíticos, não há pressa; a ansiedade da diversão; ocumprimento de rotinas obrigatórias; a preocupação com a aparência. Há até,sem se sentir ameaçado por tudo o que se passa à volta, um saudável tédio,de piquenique depois de uma barrigada, à espera da ocupação do sono.
Quando se fala na capacidade de “mobilização” do PCP pretende-se criar aimpressão de que os militantes são autómatos que acorrem a cada toque desineta. Como falsa noção, é até das mais tranquilizadoras.
Para os partidos menos mobilizadores, diante do fiasco das suas festas,consola pensar que os comunistas foram submetidos a uma lavagem ao cérebro.
Nem vale a pena indagar acerca da marca do champô.
Enquanto os outros partidos puxam dos bolsos para oferecer concertos deborla, a que assistem apenas familiares e transeuntes, a Festa do Avanteenche-se de entusiásticos pagadores de bilhetes.
E porquê? Porque é a festa de todos eles. Eles não só querem lá estar comogostam de lá estar. Não há a distinção entre “nós” dirigentes e “eles”militantes, que impera nos outros partidos. Há um tu-cá-tu-lá quase de festade finalistas.
É UM ALÍVIO A FALTA de entusiasmo fabricado – e, num sentido geral deesforço. Não há consensos propostos ou unanimidades às quais aderir.
Uns queixam-se de que já não é o que era e que dantes era melhor; outros quenunca foi tão bom.
É claro que nada disto será novidade para quem lá vai. Parece óbvio.
Mas para quem gosta de dar uma sacudidela aos preconceitos anticomunista éum exercício de higiene mental.
Por muito que custe dize-lo, o preconceito - base, dos mais ligeirossnobismos e sectarismos ao mais feroz racismo, anda sempre à volta da noçãode que “eles não são como nós”. É muito conveniente esta separação. Ma é tãoténue que basta uma pequena aproximação para perceber, de repente, que“afinal eles são como nós”
Uma vez passada a tristeza pelo desaparecimento da justificação da nossasuperioridade (e a vergonha por ter sido tão simples), sente-se de novorespeito pela cabeça de cada um.
Espero que não se ofendam os sportinguistas e comunistas quando eu disserque estar na Festa do Avante! Foi como assistir à festa de rua quando oSporting ganhou o campeonato. Até aí eu tinha a ideia, como sábiobenfiquista, que os sportinguistas eram uma minúscula agremiação de quequesem que um dos requisitos fundamentais era não gostar muito de futebol.
Quando vi as multidões de sportinguistas a festejar – de todas as classes,cores e qualidades de camisolas -, fiquei tão espantado que ainda levei unsminutos a ficar profundamente deprimido.
POR OUTRO LADO, quando se vê que os comunistas não fazem o favor decorresponder à conveniência instantaneamente arrumável das nossasexpectativas – nem o PCP é o IKEA - a primeira reacção é de canseira.
Como quem diz:”Que chatice – não só não são iguais ao que eu pensava comosão todos diferentes. Vou ter de avaliá-los um a um. Estou tramado. Nuncamais saio daqui.”
Nem tão pouco há a consolação ilusória do pick and choose.
.É uma sólida tradição dizer que temos de aprender com os comunistas...Infelizmente é impossível. Ser-se comunista é uma coisa inteira e não sepode estar a partir aos bocados. A força dos comunistas não é o sonho nem asaudade: é o dia-a dia; é o trabalho; é o ir fazendo; e resistindo, nasfestas como nas lutas.
Hás uma frase do Jerónimo de Sousa no comício de encerramento que diz tudo.A propósito de Cuba (que não está a atravessar um período particularmentefeliz), diz que “resistir já é vencer”.
É verdade – sobretudo se dermos a devida importância ao “já”. Aquele “já” éo contrário da pressa, mas é também “agora”.
Na Festa do Avante! Não se vêem comunistas desiludidos ou frustrados.
Nem tão pouco delirantemente esperançosos. A verdade é que se sente aconsciência de que as coisas, por muito más que estejam, poderiam estarpiores. Se não fossem os comunistas: eles.
Há um contentamento que é próprio dos resistentes. Dos que existem apesar dea maioria os considerar ultrapassados, anacrónicos, extintos. Há um prazerna teimosia; em ser como se é. Para mais, a embirração dos comunistas,comparada com as dos outros partidos, é clássica e imbatível: a pobreza. DePortugal e de metade do mundo, num Portugal e num mundo onde uns poucos têmmuito mais do que alguma vez poderiam precisar.
NA FESTA DO AVANTE! Sente-se a satisfação de chatear. O PCP chateia.
Os sindicatos chateiam. A dimensão e o êxito da Festa chateiam. Põem emcausa as desculpas correntes da apatia. Do ensimesmamento online, dorelativismo ou niilismo ideológico. Chatear é uma forma especialmente eficazde resistir. Pode ser miudinho – mas, sendo constante, faz a diferença.
Resistir é já vencer. A Festa do Avante é uma vitória anualmente renovada eampliada dessa resistência. ... Verdade se diga, já não é sem dificuldadeque resisto. Quando se despe um preconceito, o que é que se veste em vezdele? Resta-me apenas a independência de espírito para exprimir a únicareacção inteligente a mais uma Festa do Avante:
dar os parabéns a quem a fez e mais outros a quem lá esteve. Isto é, no casopouco provável de não serem as mesmíssimas pessoas.
Parabéns! E, para mais, pouquíssimo contrariado.”(E só com um bocadinho denada com medo).

SÁBADO dia 13 de Setembro de 2007

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