2010/05/29

Cunhal e o Protocolo


Retirado daqui. Blog do nosso embaixador em França Francisco Seixas da Costa.


Álvaro Cunhal (retratado acima pelo genial olhar fotográfico do meu amigo Alfredo Cunha) foi uma das mais controvertidas personalidades da vida contemporânea portuguesa. Secretário-geral do Partido Comunista Português durante várias décadas, projetou uma forte imagem pessoal que quase se confundia com aquela força política. A História do nosso país, no século XX, não se fará sem ele, embora muitos achem que acabará por se fazer contra ele.


A biografia de Álvaro Cunhal é objeto de uma obra, ainda inacabada, de José Pacheco Pereira - ela própria, também, um estudo com contornos polémicos, no qual Cunhal e o seu partido se recusaram a colaborar, sendo embora, na minha opinião, um documento indispensável (ia a escrever "incontornável", mas temi algumas vozes indignadas contra o vocábulo) para se entender a história política portuguesa do século XX.


Acaba agora de ser publicada uma memória sobre Álvaro Cunhal, escrita por Carlos Brito, uma das figuras marcantes do comunismo português, resistente contra a ditadura e, no período democrático, personalidade proeminente que chegou a ser candidato à presidência da República. Trata-se de um trabalho interessante, feito à luz da proximidade do autor com o líder comunista, que nos revela algumas facetas desconhecidas da sua personalidade, embora mantenha muito da tradicional reserva de quem quer, no essencial, permanecer leal àquela área política.


Vários testemunhos comprovaram, ao longo dos anos, que Cunhal, sendo embora uma figura de rutura em muitos domínios da vida política, era muito cuidadoso com as facetas exteriores da imagem do Estado, que respeitava com grande escrúpulo. Daí que as simples questões protocolares, porque as entendia com um simbolismo significativo, o preocupassem sempre.


Carlos Brito, a certo passo do seu livro, revela que, um dia, um deputado comunista, indicado para acompanhar uma visita oficial ao estrangeiro, anunciou que não ia utilizar gravata, não obstante as regras protocolares recomendarem um traje formal em certas ocasiões da deslocação. A persistente resistência do deputado fez subir o assunto a níveis mais elevados de decisão.

O deputado foi, assim, chamado a uma conversa na sede do partido. A certo passo da reunião, Cunhal entrou inopinadamente na sala e, como forma de reforçar os argumentos de quantos pretendiam demover o deputado da sua irreverente teimosia, foi pedida a opinião do secretário-geral sobre o assunto.


Depois de ouvir as "partes" e refletir sobre as regras que eram exigidas, Álvaro Cunhal fez notar que, tratando-se de um país africano, era comum, como alternativa às roupas protocolares europeias, o uso de trajes tradicionais em cerimónia oficiais. E acrescentou: "Ora nós temos trajes tradicionais muito bonitos, por exemplo, os minhotos". E logo adiantou: "O nosso camarada podia ir vestido de minhoto e evitava-se a gravata. Até podemos telefonar já aos camaradas de Viana a encomendar um fato".

O pânico terá irrompido na cara do relutante deputado, que concedeu de imediato: "Não é preciso, não é preciso, eu vou comprar a gravata".

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