Julgava tê-lo perdido mas hoje, vasculhando no fundo dos "directórios" ... encontrei-o.
Se, quem o ler, não chegar ao fim completamente estafado, como eu fiquei, não merece o texto e muito menos o esforço do João (velho companheiro de coro na Incrível Almadense e que não vejo à séculos).
De acordo com
o calendário gregoriano, 1967 foi um «ano comum». Isto é, um ano não bissexto,
de 365 dias. Mas não atribuamos demasiadas responsabilidades ao Papa Gregório
XIII que, a 18 de Janeiro de 1582, o promulgou para substituir o anterior
calendário juliano: nem através de ligação directa ao Grande Arquitecto do
Universo poderia ele ter previsto a dimensão exacta pela qual o ano em que John
Coltrane, Che Guevara, Woody Guthrie e René Magritte morreram e Kurt Cobain,
Julia Roberts, Nicole Kidman e Noel Gallagher nasceram foi tudo menos um ano
comum. No mundo, em geral, e na cultura pop, em particular, 1967 foi,
indiscutivelmente, um daqueles anos de viragem e ruptura que não deixaria pedra
sobre pedra do que para trás ficara e que marcaria irremediavelmente as quatro
décadas que, até hoje, se lhe seguiram.
Porque é
impossível não o referir, recorde-se já que foi em 1967 que, a 1 de Junho, os
Beatles publicaram Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Enquanto marco
simbólico do ano e da era, a sua importância permanece, mas deve também
adiantar-se que, no âmbito mais restrito da sua ressonância na cultura pop
posterior, já viu bem melhores dias: não só todo o resto que os Beatles
editaram no mesmo período de doze meses - os singles «Penny Lane»/«Strawberry
Fields Forever», «All You Need Is Love»/«Baby You’re a Rich Man» e «Hello
Goodbye»/«I Am the Walrus» e o duplo EP Magical Mystery Tour - é
francamente mais rico e interessante como, em sucessivas votações dos «all time
best» (na última, do número de Junho da «Mojo», para «os 100 discos que mudaram
o mundo», ficou-se por um modesto 16º lugar), tem vindo, aceleradamente, a ver
a sua cotação desvalorizada relativamente a diversos outros concorrentes e até
face a outras gravações da banda de Lennon e McCartney como Revolver, ou
mesmo (na recentíssima da «Mojo») ao single de 1963, «I Want To Hold Your Hand»
(um honroso segundo lugar atrás de «Tutti Frutti», de Little Richard).
As oscilações
do gosto terão a sua própria lógica, mas a verdade é que, num ano em que -
política, social e culturalmente - aconteceu incomparavelmente mais do que em
muitas décadas, escolher um único objecto/figura emblemáticos não andaria muito
longe de confiar no acaso de um lançamento de dados. Tomem, então, nota:
1) álbuns de estreia pop/folk/rock - The Velvet
Underground & Nico, seguido, também em 1967, de White Light/White
Heat; The Songs of Leonard Cohen; The Doors (e, no final do
ano, Strange Days); The Piper at the Gates of Dawn, dos Pink
Floyd; Safe as Milk, de Captain Beefheart; Are You Experienced?,
da Jimi Hendrix Experience (e ainda Axis: Bold as Love); Mr. Fantasy,
dos Traffic; The Grateful Dead; Buffalo Springfield (Neil
Young+Stephen Stills) e (sobretudo), no Outono, Buffalo Springfield Again;
Chelsea Girl, de Nico; David Bowie; Surrealistic Pillow,
dos Jefferson Airplane, antecedendo After Bathing at Baxter’s; Moby
Grape; Blowin’ Your Mind, de Van Morrison; Electric Music for the
Mind and Body, de Country Joe & The Fish (que publicariam também I
Feel Like I’m Fixin’ to Die); The Thoughts of Emerlist Davjack, dos
Nice (casulo de Keith Emerson, futuramente Emerson, Lake & Palmer); H.
P. Lovecraft; Big Brother & The Holding Company (voz Janis Joplin).
2) obras-primas avulsas, objectos de culto e sementes
de futuro - Goodbye and Hello, de Tim Buckley; Forever Changes e Da
Capo, dos Love; Pleasures of the Harbor, de Phil Ochs; Absolutely
Free, dos Mothers of Invention; 5000 Spirits or the Layers of the Onion,
da Incredible String Band; Days of Future Passed, dos Moody Blues; The
Who Sell Out; Something Else by the Kinks; Between the Buttons
e Their Satanic Majesties Request, dos Rolling Stones; Walk Away
Renee/Pretty Ballerina, dos Left Banke; Ptoof, dos Deviants; Tenderness
Junction, dos Fugs; Tangerine Dream, dos Kaleidoscope; Mass In F
Minor, dos Electric Prunes; Younger than Yesterday, dos Byrds; Disraeli
Gears, dos Cream (Eric Clapton+Jack Bruce+Ginger Baker); John Wesley
Harding, de Bob Dylan; Easter Everywhere, dos 13th Floor Elevators.
Que outro ano,
anterior ou posterior, se poderá gabar de ter fundado uma mão-cheia de géneros
musicais (o psicadelismo dos Pink Floyd, Grateful Dead, Country Joe & The
Fish, Kaleidoscope, Traffic, Fugs, H. P. Lovecraft, Jefferson Airplane ou de Their
Satanic Majesties; o rock-sinfónico/progressivo dos Nice ou Moody Blues; o
«noise», com White Light/White Heat; os blues «cósmicos» de Jimi
Hendrix, Big Brother ou Cream - ainda que, aqui, haja que reconhecer os antecedentes
dos Yardbirds; as incursões pelos idiomas clássico, da vanguarda
contemporânea/electrónica e das músicas orientais dos Electric Prunes, Tim
Buckley, Nico, Incredible String Band, Love, Frank Zappa/Mothers of Invention,
Phil Ochs e dos próprios Beatles que, já em Revolver, por aí haviam
deambulado; a ópera-rock com The Who Sell Out), de ter revelado (ou
confirmado, ao segundo álbum) figuras que marcariam indelevelmente a pop até
hoje - Lou Reed, John Cale, Van Morrison, Neil Young, Jimi Hendrix, Nico, David
Bowie, Tim Buckley, Leonard Cohen, Frank Zappa, Captain Beefheart - e, de um
modo geral, ter participado intensamente nas convulsões que, daí em diante (e o
Maio francês estava apenas a um ano de distância), virariam o século XX do
avesso? A música aspirava o espírito do tempo e, ao expirá-lo, acelerava a
rotação do mundo.
De facto, o
ano em que, logo a 2 de Janeiro, Charlie Chaplin estreava o seu último filme (A
Condessa de Hong Kong) e que, a 19 de Dezembro, ouviria o professor John
Wheeler formular, pela primeira vez, o conceito de «buraco negro», foi um
período de movimentos e eventos contraditórios: se a Guerra dos Seis Dias
(entre 5 e 10 de Junho) incendiava irreversivelmente o Médio Oriente, o golpe
de estado «dos coronéis», na Grécia, instalava mais uma ditadura europeia e o
general Westmoreland garantia que a vitória americana no Vietname era certa, o
«Gathering of the Tribes for a Human Be-In» que, a 14 de Janeiro, reunia 30 mil
pessoas no Golden Gate Park de São Francisco, fazia convergir para um mesmo
lugar as várias sensibilidades heterodoxas da época (ecologistas, velhos
beatnicks, feministas, novos hippies, anarco-freaks, militantes anti-Vietname,
contestatários estudantis, activistas anti-segregacionistas, radicais de
esquerda, gurus místicos e apóstolos lisérgicos), dava a palavra a oradores
como Allen Ginsberg, Jerry Rubin e Timothy Leary (que lançaria o mote do ano
com o seu famoso «Turn on, tune in, drop out» aparentemente «soprado» por
Marshall McLuhan, enquanto o «underground chemist», Owsley Stanley, abastecia
generosamente as massas com LSD - ilegalizado desde 16 de Outubro de 1966 -
especialmente sintetizado para a ocasião), oferecia o palco aos Jefferson
Airplane, Grateful Dead e Quicksilver Messenger Service e, acima de tudo, anunciava
o «Summer of Love» que, meses depois, faria convergir para o distrito de
Haight-Ashbury, Berkeley e a baía de São Francisco mais de 100 mil «flower
children» em busca de «amor livre», comunitarismo, transcendência e bucolismo
utópicos «à la» Thoreau, êxtases químicos instantâneos e toda a parafernália
cultural e filosófica que estaria na raiz da «New Age» e da contracultura
«underground».
No entanto, a
15 de Janeiro, um dia depois do «Human Be-In», no Ed Sullivan Show, os Rolling
Stones, a bem da moral e dos bons costumes, seriam forçados a cantar «Let’s
Spend Some Time Together» em vez do «Let’s Spend the Night Together» original
e, um mês mais tarde, Mick Jagger e Keith Richards veriam a polícia londrina
invadir-lhes uma festa privada e acusá-los de consumo e posse de drogas, pelo
que, a 29 de Junho, acabariam mesmo por serem presos. Foi, sem dúvida, um ano
em que manter-se a par das notícias não terá sido fácil: no mesmo dia em que as
«tribos» se congregavam no Golden Gate Park, o «New York Times» revelava que o
Exército americano realizava experiências em matéria de guerra biológica; a 1
de Março, a Revolução Cultural chinesa terminava com o regresso dos Guardas
Vermelhos à escola, oito dias antes de Svetlana Alliluyeva, filha de Estaline,
fugir para os EUA e, no penúltimo dia do mês, de os Beatles serem fotografados
para a lendária capa de Sgt. Pepper’s, uma semana antes de levantar voo
o primeiro Boeing 737 (a 11 de Dezembro, seria o baptismo de voo do Concorde).
Outra linha de acontecimentos decorria paralelamente: a 28 de Abril, Cassius
Clay/Muhammad Ali recusa combater no Exército dos EUA, e embora, a 12 de Junho,
o Supremo Tribunal de Justiça norte-americano (do qual, a 30 de Agosto,
Thurgood Marshall seria o primeiro membro afro-americano) tenha declarado
inconstitucionais todas as leis que proibiam os casamentos interraciais, isso
não impediu que, a 15 de Julho - dois dias antes da morte de John Coltrane -,
expludam violentos motins raciais em Detroit (43 mortos, 342 feridos, 1400
edifícios incendiados), que alastraram a Nova Iorque, Washington DC e Alabama,
e, a 21 de Setembro (quatro dias depois da estreia do musical hippie, Hair),
dezenas de milhares marcharam sobre Washington contra a guerra do Vietname
enquanto Allen Ginsberg entoava mantras com o objectivo de «fazer levitar o
Pentágono».
A atmosfera
cultural do «Verão do Amor» (que, na edição de 7 de Julho da «Time», a «cover
story», intitulada «The Hippies: The Philosophy of a Subculture», descrevia
como «faz o que te apetece, onde quer que o tenhas de fazer e fá-lo quando
quiseres. Sai fora. Abandona a sociedade tal como a conheces. Abandona-a por
completo. Assombra o espírito de todas as pessoas normais que possas encontrar.
Converte-os. Se não às drogas, pelo menos à beleza, ao amor, à honestidade e à
alegria»), seria, entretanto, perfeitamente caracterizada pelo Monterey Pop
Festival - de 16 a 18 de Junho, 200 mil participantes e o primeiro festival
pop/folk/rock, ao ar livre e gratuito -, na Califórnia, no qual actuaram Jimi
Hendrix, The Who, The Byrds, Jefferson Airplane, Ravi Shankar, Hugh Masekela,
The Grateful Dead, Janis Joplin com os Big Brother & The Holding Company,
The Association, Buffalo Springfield, Country Joe & The Fish, Moby Grape,
Quicksilver Messenger Service, Laura Nyro, Canned Heat, Simon & Garfunkel,
The Paul Butterfield Blues Band, The Steve Miller Band, os Blues Project e Otis
Redding, que morreria a 10 de Dezembro, num acidente de avião. Não foi a única
baixa do universo cultural a lamentar: entre Maio e Agosto, juntar-se-lhe-iam
Edward Hopper, Vivien Leigh, Jayne Mansfield, o poeta Carl Sandburg, o
dramaturgo Joe Orton, René Magritte, o manager dos Beatles, Brian Epstein e
Woody Guthrie. Tragédia de enorme dimensão foram as cheias de Lisboa, a 26 de
Novembro, com 462 vítimas mortais, que se somariam às das guerras coloniais em
curso, às do Vietname ou às decorrentes do abate pela República Popular da
China de dois aviões norte-americanos que teriam violado o seu espaço aéreo.
Mas, mais
visível ou invisivelmente, havia forças várias em movimento: a 26 de Junho (um
dia antes de, em Enfield, no Reino Unido, o Barclays Bank abrir a primeira
caixa Multibanco), Karol Wojtyla - futuro João Paulo II - é ordenado cardeal e,
pela mesma altura, Lech Walesa começa a trabalhar como electricista, nos
estaleiros Lenine, de Gdansk; a 4 de Julho, o Parlamento britânico
descriminaliza a homossexualidade, Antony Hewish e Jocelyn Bell Burnell, da
Universidade de Cambridge, descobrem o primeiro pulsar e, no final do ano (que
se iniciara com a morte de Jack Ruby, assassino de Lee Harvey Oswald, putativo
assassino de John Kennedy), Christiaan Barnard realiza, na Cidade do Cabo, na
África do Sul, o primeiro transplante cardíaco. O «zeitgeist» da era
impulsionaria, ainda Ralph J. Gleason e Jann Wenner a fundar a «Rolling Stone»
(para onde Greil Marcus - salário: 30 dólares por semana -, Hunter S. Thompson
ou Lester Bangs escreveriam), sobrevivente única de «rock magazines» históricos
como a «Crawdaddy!» e a «CREEM». Muitos anos mais tarde, reflectindo sobre a
atmosfera desses anos, um dos seus alegados heróis, Leonard Cohen, diria: «Os
hippies não me interessaram especialmente. Em particular, quando começaram a
poluir os rios e a deixar lixo por todo o lado, quando iam para o campo adorar
Deus e a Natureza. Eram péssimos campistas! Eu, que fui escuteiro, posso
dizê-lo».
UFF
PS: Na altura eu tinha 17 "aninhos" e muitas destas coisas só as recuperei muitos anos mais tarde.
Ainda hoje muitos dos citados são os meus favoritos.
Ver ainda aqui o que estava na moda.