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2014/07/23

Livrarias


Não posso estar mais de acordo.
Este post é dedicado aos corajosos livreiros independentes que insistem, contra tudo e contra todos, em nos manterem "seres pensantes" e sobretudo aos que não conseguiram resistir ao estúpido mainstream.

2011/09/15

O Livro

Uma notícia roubada ao José Mário Silva e um cartaz roubado ao José Pacheco Pereira, ou ainda, tá tudo louco.

2011/05/10

Torre de Babel

Mais um motivo para visitar a fantástica cidade que é Buenos Aires.
A noticia é retirada do JN

Uma Torre de Babel com 25 metros de altura, construída em espiral com 30 mil livros de todas as línguas, foi erigida numa praça do centro de Buenos Aires por iniciativa da artista argentina Marta Minujin.
"A ideia é unir todas as raças através do livro", explicou a artista sobre a sua obra monumental que será inaugurada, próxima na quarta-feira, e "existirá" na praça San Martin até ao final do mês.

A artista decidiu criar esta Torre de Babel, porque Buenos Aires é a Capital Mundial do Livro 2011, proclamada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

A partir de quinta-feira, os seus sete andares podem ser subidos gratuitamente por grupos de até 100 pessoas e a visita será acompanhada por uma banda sonora criada por Marta Minujin, que dá a ouvir a palavra "livro" em todas as línguas do mundo.

Perto de metade dos livros que serviram de "tijolos" para a construção da torre foi oferecida por 50 embaixadas em Buenos Aires, mas a outra metade vem de doações de milhares de pessoas mobilizadas graças a uma campanha pública para esta "obra de participação maciça", nas palavras da artista.

No último dia de exposição da peça, 28 de Maio, os visitantes podem escolher um livro na língua da sua preferência e levá-lo.

2011/04/03

O Homem

A propósito deste post do Herdeiro de Aécio

Irving Wallace foi um dos escritores da minha juventude responsável, juntamente com Leon Uris, Erich Maria Remark, Hans Hellmut Kirst, Sven Hassel e outros, pela criação de hábitos de leitura que depois me levaram a outros voos.
Não sendo grandes escritores tinham a competência de escrever histórias romanceadas enquandradas por factos veridicos que, numa altura de difícil acesso á informação, não havia net e estavamos antes do 25, nos forneciam informação preciosa (salvaguardando os excessos judaicos e patrióticos de Uris).
Quem quiser conhecer conhecer os meandros do Prémio Nobel não tem mais que ler o Prémio que mais tarde foi consagrado em filme, com Paul Newman, Elke Sommer e Edward G. Robinson ( o guionista foi o mesmo de North by Northwest de Hitchcock).
Quem quiser saber da saga dos marines no pacífico, basta ler Grito de Batalha, ou sobre o Gueto de Varsóvia leia-se Mila 18, a construção do muro e divisão de setores de Berlim, consulte-se/leia-se Armaggedon e, a cereja no topo do bolo, o sionismo e a construção do estado judaico indispensável o Exodus todos de Leon Uris.
O drama alemão na 2ª Guerra? A Oeste Nada de Novo e Fábrica de Oficiais de Kirst, a série 08/15 de Kirst.
No entanto o livro que por essa altura mais me impressionou foi As Três Sereias de Wallace que, à altura da sua publicação foi um escandalo nos EUA.
Um grupo de cientistas vai investigar uma tribo perdida algures numa ilha do pacífico de estrutura matriarcal...
O resto só lendo.

PS: Todos os livros citados foram editados pela Edições Europa-Amárica na colecção Século XX que deveria ser considerado verdadeiro serviço público.
O primeiro livro em 1945? A Centelha da Vida de Erich Maria Remark

Correcção ao meu comentário:

No comentário anterior atribuí a Kirst a autoria de A oeste Nada de Novo e Fábrica de Oficiáis, sendo que foram escritos por Remark.
Pelo lapso peço desculpa.

Correcção do A. Teixeira á minha correcção:

Permita-me corrigir-lhe a correcção:
O livro Fábrica de Oficiais é da autoria, como escreveu inicialmente, de Hans Hellmut Kirst.

A Oeste Nada de Novo é, como escreveu depois na correcção, da autoria de Erich Maria Remarque. Sempre vi escrito Remarque. E a acção deste último livro decorre durante a Primeira Guerra Mundial, não durante a Segunda como escreveu inicialmente.

Comentário meu à correcção do A. Teixeira:

Tem toda a razão quanto à sua correcção que agradeço.

Em relação ao nome também sempre vi escrito Remarque.
Fiz, no entanto, alguma pesquisa e, de acordo com a Wikipédia, parece que o homem nasceu Erich Paul Remark em Osnabruck em 1898, mudando mais tarde de Paul para Maria em homenagem à mãe.
No dizer mesmo texto os nazis fizeram correr a versão que o seu verdadeiro nome era Kramer (Remark ao contrário) e vale o que vale.
Daí a minha opção pelo Remark que me soa bem mais alemão que Remarque.
Cumprimentos.

2009/01/03

BEST OF 2008

Tal como no ano passado, o Ípsilon publicou ontem o seu Best of 2008: livros, teatro, dança, música, exposições, cinema. A parte dos livros é o resultado das escolhas de um colégio de críticos [Francisco Luís Parreira, Helena Vasconcelos, Isabel Coutinho, José Manuel Fernandes, José Riço Direitinho, Luís Miguel Queirós, Manuel Gusmão, Margarida Santos Lopes, Mário Santos, Pedro Mexia e eu próprio] que votou os 22 títulos em baixo alinhados por ordem de pontuação:



A Faca Não Corta o Fogo, Herberto Helder
Assírio & Alvim

O Homem sem Qualidades, Robert Musil
Dom Quixote

O Romance de Genji, Musaraki Shikibu
Relógio d’Água

Livro do Desassossego, [Fernando Pessoa] Vicente Guedes / Bernardo Soares
Ed. Teresa Sobral Cunha
Relógio d’Água

Salónica, Mark Mazower
Pedra da Lua

Caos Calmo, Sandro Veronesi
Asa

Myra, Maria Velho da Costa
Assírio & Alvim

Diário de um Mau Ano, J. M. Coetzee
Dom Quixote

A Grande Guerra pela Civilização, Robert Fisk
Edições 70

O Jogo do Mundo, Julio Cortazar
Cavalo de Ferro

Contos Completos, Truman Capote
Sextante

Ela e Outras Mulheres, Rubem Fonseca
Campo das Letras

Odes, Horácio
Cotovia

A Seco, Augusten Burroughs
Bico de Pena

O Jovem Estaline, Simon Sebag Montefiore
Alethêia

Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, VV.AA.
Fernando Cabral Martins (org.)
Caminho

A Feiticeira de Florença, Salman Rushdie
Dom Quixote

Entre os Dois Palácios / O Palácio do Desejo / O Açucareiro
Naguib Mahfouz
Civilização

Correcção, Thomas Bernhard
Fim de Século

A Educação Sentimental, Gustave Flaubert
Relógio d’Água

2008/04/19

The Blooming Tower

NUNCA É TARDE PARA APRENDER: TAKFIR (تكفي)

Lawrence Wright, The Looming Tower : Al Qaeda's Road to 9/11, Penguin Books, 2007

Este excelente livro (de que penso existe uma recente tradução portuguesa que desconheço) é o exemplo, mais um, da qualidade do jornalismo de investigação americano, que está longe de ser apenas jornalismo, mas uma fusão do trabalho na imprensa com instituições, universidades, centros de investigação, de que resultam livros como este. The Looming Tower é uma narrativa factual, daí a parte jornalística no sentido nobre, da criação e desenvolvimento da Al Qaeda, uma biografia de Bin Laden e dos outros membros proeminentes da organização, e um retrato do contexto cultural, político e religioso que criou e alimenta o terrorismo fundamentalista islâmico.

Para quem está habituado a ler escritos preguiçosos sobre o fundamentalismo islâmico, é um prazer ir com este livro mais longe. A preguiça intelectual irmana hoje os que condenam todo o Islão, todo o mundo muçulmano por ideias e práticas de uma "vanguarda", no perfeito sentido leninista, fundamentalista e radical; como aqueles que usam a Al Qaeda para demonizar a política americana, que seria, em última instância, a responsável, quando não a "criadora" de Bin Laden e da organização terrorista. A repetição ad nauseam destas asneiras pode ser politicamente instrumental, mas nem por isso deixam de ser asneiras.

O livro de Wright mostra como as ideias da Al Qaeda se formaram na conjugação de uma série de "fundamentalismos", em particular a obra e a acção de Sayyd Qutb, transportada para o meio saudita pelo grupo egípcio de Zawahiri, na experiência afegã de luta contra os soviéticos e depois no contexto da disseminação de várias concepções, entre o político e o teológico, pelas redes de mesquitas e madrassas de Londres a Kuala Lumpur, como o "takfirismo", a generalização da prática de proclamar alguém "cafre" (kafir, افر ), ou seja, fora do Islão, apóstata, infiel, logo passível de ser morto. O "takfirismo", importado do Egipto e da Argélia, deu às discussões da Al Qaeda o argumento teológico que lhe permitia matar indiscriminadamente homens, mulheres e crianças, inclusive muçulmanos.
A personagem principal deste livro, menos aliás do que se poderia supor, é Bin Laden. O milionário saudita que, à data em que se iniciam as actividades terroristas da Al Qaeda, já não o é, aparece como uma personagem cinzenta, uma daquelas personagens na história que é decisiva em muitos momentos, mas que parece a maioria das vezes ser um pano de fundo para uma sucessão de eventos de que é mais testemunha do que autor. Em bom rigor, o livro de Wright atribui-lhe dois papéis chave, em momentos e circunstâncias diferentes, no "caminho" para o 11 de Setembro: um, o seu papel como financiador por conta própria ou alheia (dos americanos e dos sauditas) da guerrilha afegã contra a invasão soviética, e na viragem da Al Qaeda para os alvos americanos, num processo de globalização do terrorismo, das Filipinas a Nova Iorque, sem precedente. Quando assume o segundo papel, já está longe do primeiro, porque Bin Laden fica numa situação de quase penúria quando tem de sair do Sudão para o Afeganistão e a família real saudita lhe tira a mesada da firma familiar e a nacionalidade saudita. Nesse momento, a Al Qaeda, que é ainda uma organização de acolhimento e suporte para os fundamentalistas combatentes de todo o lado do mundo, e que funcionava mais como organização "social" do que como organização terrorista, evolui para o que é hoje.

Contrariamente ao que se repete por todo o lado, o papel dos americanos em "fazer" Bin Laden é muito pequeno. A maioria dos guerrilheiros que combateram no Afeganistão pouco tinham a ver com Bin Laden e os seus "árabes afegãos", cuja capacidade militar desprezavam, e que eram muito mais activos em discussões religiosas em Peshawar no Paquistão, do que a lutar na frente de batalha. E o perfil de Bin Laden é um puro produto do Islão saudita, preso numa religiosidade medieval, e ao mesmo tempo capaz de uma total modernidade na utilização das novas tecnologias. Lawrence da Arábia conheceu gente desta, gente do deserto, religiosa, contemplativa, "poética" num certo sentido, hábil na falcoaria, ladrões de estrada, cruéis chefes de tribos, corajosos, e fáceis de introduzir aos explosivos, detonadores, sabotagem e afins.

Bin Laden é daquelas personagens com intensa fé religiosa que "melhora" na adversidade mais extrema. Rigoroso, cumpridor sem falha do estrito programa de vida que se impôs, vivendo uma vida ascética, a que apenas a paixão árabe pelos cavalos dá alguma cor, juntou à sua volta gente muito diferente mas que controla mais pelo exemplo do que pelo poder. E este é o perfil típico de um homem muito, muito perigoso.
Wright abre o livro com Sayyd Qutb nos Estados Unidos, entre Nova Iorque, Washington e uma pequena cidade do Colorado, no final dos anos quarenta. Um intelectual egípcio, já com mais de quarenta anos, tímido e solitário, desenvolve uma relação de repulsa pelo mundo americano quase visceral. Nos textos sobre a sua experiência nos EUA há todo o caldo de cultura de uma recusa moral do mundo americano, uma análise devastadora de terra sem fé (Wright nota como essa percepção é a oposta à que os europeus tem dos EUA, terra do Bible Belt, onde as notas de dólar tem inscrito In God We Trust), presa a valores materiais, corrupta, injusta, fascinado pelo dinheiro, pelo sucesso e pelo pecado. Este retrato de Qutb da América é muito próximo da demonologia comunista anti-americana, mas também de muitos intelectuais europeus, como Aldous Huxley, por exemplo, que achava que os americanos queriam construir uma sociedade conformista e normalizada, onde Our Lord seria substituído por Our Ford. Qutb acrescenta a esta reacção uma profunda misoginia, uma mistura de ódio e de pavor face às mulheres, que aparecem sempre como sedutoras e fonte do pecado, numa atitude não muito distinta da descrição das mulheres como "vasos de corrupção" em certos autores cristãos.

Para manter íntegro o seu mundo, Qutb lê exaustivamente o Corão lançando as bases de uma obra que nos anos cinquenta em diante vai inspirar gerações de jovens muçulmanos e que vai ser levada para dentro da Al Qaeda pelo grupo egípcio de Zawahiri, talvez mais importante do que o próprio Bin Laden na definição de um quadro político-religioso na organização. Na sua obra mais conhecida Marcos na Estrada (Ma'alim fi al-Tariq, معالم في الطريق) e nos seus comentários ao Corão, Na Sombra do Corão (Fi Zilal al-Qur'an في ظِلالِ القرآن), Qutb lançou as bases do fundamentalismo islâmico, em particular a ideia da necessidade do retorno a uma "comunidade muçulmana que de há muito desapareceu":

"um grupo de pessoas cujos costumes, ideias e conceitos, regras e leis, valores e critérios, derivam todos de uma fonte islâmica. Uma comunidade com estas características desapareceu no momento em que as leis de Deus foram suspensas na terra."
A restauração desta "comunidade" tornou-se o programa dos militantes muçulmanos radicais que, no Egipto, na Arábia Saudita, no Yemen, no Sudão, na Argélia, no Paquistão e no Afeganistão se foram agregando à volta de um saudita milionário Bin Laden, que tivera um papel fundamental na canalização dos fundos sauditas e americanos para apoiar a guerra contra os invasores soviéticos no Afeganistão. Tudo isto aconteceu depois de Qutb ter sido um "mártir" ele próprio, procurando o martírio na recusa absoluta de qualquer gesto que o poupasse a ser condenado à morte e enforcado no Egipto em 1966.
A personagem principal deste livro, menos aliás do que se poderia supor, é Bin Laden. O milionário saudita que, à data em que se iniciam as actividades terroristas da Al Qaeda, já não o é, aparece como uma personagem cinzenta, uma daquelas personagens na história que é decisiva em muitos momentos, mas que parece a maioria das vezes ser um pano de fundo para uma sucessão de eventos de que é mais testemunha do que autor. Em bom rigor, o livro de Wright atribui-lhe dois papéis chave, em momentos e circunstâncias diferentes, no "caminho" para o 11 de Setembro: um, o seu papel como financiador por conta própria ou alheia (dos americanos e dos sauditas) da guerrilha afegã contra a invasão soviética, e na viragem da Al Qaeda para os alvos americanos, num processo de globalização do terrorismo, das Filipinas a Nova Iorque, sem precedente. Quando assume o segundo papel, já está longe do primeiro, porque Bin Laden fica numa situação de quase penúria quando tem de sair do Sudão para o Afeganistão e a família real saudita lhe tira a mesada da firma familiar e a nacionalidade saudita. Nesse momento, a Al Qaeda, que é ainda uma organização de acolhimento e suporte para os fundamentalistas combatentes de todo o lado do mundo, e que funcionava mais como organização "social" do que como organização terrorista, evolui para o que é hoje.

Contrariamente ao que se repete por todo o lado, o papel dos americanos em "fazer" Bin Laden é muito pequeno. A maioria dos guerrilheiros que combateram no Afeganistão pouco tinham a ver com Bin Laden e os seus "árabes afegãos", cuja capacidade militar desprezavam, e que eram muito mais activos em discussões religiosas em Peshawar no Paquistão, do que a lutar na frente de batalha. E o perfil de Bin Laden é um puro produto do Islão saudita, preso numa religiosidade medieval, e ao mesmo tempo capaz de uma total modernidade na utilização das novas tecnologias. Lawrence da Arábia conheceu gente desta, gente do deserto, religiosa, contemplativa, "poética" num certo sentido, hábil na falcoaria, ladrões de estrada, cruéis chefes de tribos, corajosos, e fáceis de introduzir aos explosivos, detonadores, sabotagem e afins.

Bin Laden é daquelas personagens com intensa fé religiosa que "melhora" na adversidade mais extrema. Rigoroso, cumpridor sem falha do estrito programa de vida que se impôs, vivendo uma vida ascética, a que apenas a paixão árabe pelos cavalos dá alguma cor, juntou à sua volta gente muito diferente mas que controla mais pelo exemplo do que pelo poder. E este é o perfil típico de um homem muito, muito perigoso.
Um dos temas deste livro é a análise dos erros da intelligence americana em aperceber-se do risco de um atentado em território americano, principalmente pela compartimentação da informação entre a CIA e o FBI. Com base nos dados que Wright utiliza é mais a CIA que aparece como responsável da sonegação de informação vital, que o FBI. Este poderia ligar os dados que a CIA tinha da presença de um grupo da Al Qaeda em território americano com outras investigações em curso, e, eventualmente, desmantelar a conspiração do 11 de Setembro, se eles lhes fossem fornecidos. Embora nunca se saiba até que ponto as coisas aconteceriam de diferente se, os inquéritos realizados levaram a uma maior coordenação de todas as agências de informação em matérias do terrorismo. O livro de Wright dispersa-se um pouco nesta parte ao cair na tentação de personalizar a história no agente do FBI John O'Neill, que morreu no atentado, numa tradição jornalística de "contar as histórias" com base em protagonistas, que aqui não resulta. Mas, com esta excepção, trata-se da melhor introdução jornalística ao fundamentalismo muçulmano da Al Qaeda.

Veja-se a crítica de Eduardo Pitta ao livro.

E a confirmação por vários leitores da edição portuguesa cuja capa coloco aqui.

2008/03/23

Saber ler é tão dificil como saber escrever

António Lobo Antunes
escritor
DN.TEMA: 25 anos de vida literária

«Saber ler é tão difícil como saber escrever»



maria augusta silva
José carlos carvalho (fotos)

Podemos começar por falar de amor?

Se eu souber responder...

O título do seu novo romance, Eu Hei-de Amar Uma Pedra, nascendo embora de um canto popular, terá a ver, igualmente, com impossibilidades do amor?

Não sei russo, mas quando dizem que Pushkin empregava a palavra carne e sentia-se o gosto da palavra carne na boca, isso tem a ver com as palavras que se põem antes e depois. É a mesma coisa que amor. Os substantivos abstractos são perigosos.

Há uma personagem no livro, que, à quarta-feira, ao longo de décadas, vai, secretamente, a uma pensão da Graça, ama e ali morre...

Foi daí que o livro veio. Só mudei o sítio. Sempre me espantou essa extraordinária forma de amor. A sexualidade, sempre tão importante para mim - e continua a ser -, cada vez me parece mais vazia de sentido quando não há outro modo de diálogo e de encontro, embora seja muito difícil resistir ao desejo imediato.

Amor é algo mais?

A noção de amor varia de pessoa para pessoa. Muitas vezes estamos apaixonados ou estaremos agradecidos por gostarem de nós? Ou será que o outro é apenas alguém junto de quem nos sentimos menos sozinhos? Não sei bem o que é a verdade acerca do amor e duvido que haja quem saiba. Só tenho perguntas, não tenho respostas. Até que ponto o amor não é apenas a idealização de um outro e de nós mesmos?

Nunca é fácil salvar uma relação...

Uma coisa é o amor, outra é a relação. Não sei se, quando duas pessoas estão na cama, não estarão, de facto, quatro: as duas que estão mais as duas que um e outro imaginam. Não me preocupa muito. Preocupa-me em relação a mim mesmo, mas há grandes partes da minha vida que eliminei sem piedade. Não vou a jantares, não vou a lançamentos.

E não tem solidões?

Preciso e gosto de estar sozinho.

Ao fim de 25 anos de vida literária, celebrados hoje, quem é António Lobo Antunes para António Lobo Antunes?

Vida literária custa-me a engolir, soa pretensiosa. Digo que se passam 25 anos sobre a publicação do primeiro romance [Memória de Elefante], que andou em bolandas, de editora em editora, a ser rejeitado. Quando saiu, já tinha acabado mais dois livros. Mas 25 anos é muito tempo e serve para ver que já não terei mais 25 para escrever.

Em princípio, a morte não está nas nossas mãos...

Às vezes, a gente morre por desatenção. Outras vezes morre-se quando se pode. Mas, a maior parte das vezes, morremos porque se nos acabou a saúde. Não fomos feitos para a morte, a não ser para a morte voluntária. A involuntária sempre me pareceu uma tremenda injustiça, para não falar em crueldade.

A intensidade poética da sua prosa é para aliviar tensões entre as personagens?

Não me é consciente. Uma coisa para mim é clara: tenho de proteger os meus ovos, que são os meus livros. Se racionalizar as coisas, perco-as. Estaria a fechar portas a mim mesmo e a essas coisas, que não sei bem se me pertencem, e emergem com essa força. Nos momentos felizes, a mão anda sozinha. A cabeça está a ver ao longe e fica contente, porque são as palavras certas que a cabeça não encontraria. É a mão.

Como dissocia o escritor da obra?

Não tenho bem a sensação de o livro nascer de mim. Faço a primeira versão, trabalho muito a segunda, no entanto, depois de entregar o livro, não vejo provas, não faço mais nada. Tudo o que quero é fazer outro. O livro só existe quando estou a escrever. E o tempo é-me muito curto. Se fizer mais dois ou três...

Um autor acéfalo conseguirá realizar uma obra-prima?

Se tiver uma mão suficientemente grande... Prende-se com um conjunto de coisas: primeiro, é preciso ter lido muito. Aprende-se a escrever, lendo. E também é necessária uma grande humildade face ao material da escrita. É a mão que escreve. A nossa mão é mais inteligente do que nós. Não é o autor que tem de ser inteligente, é a obra. O autor não escreve tão bem quanto os livros.

Está a dizer-me que o livro, em relação ao autor, é uma mentira?

Estou a dizer que o livro é melhor do que eu. Não escrevo assim tão bem.

Quem escreve o livro por si?

Um dia, em conversa com Eduardo Lourenço, a propósito de criação literária, ele lembrava o soneto de Pessoa (de quem não sou grande fã e ele é), que fala de «emissário de um rei desconhecido (...)», uma espécie de mensageiro. Há uns tempos, disse ao telefone, ao meu agente, ter a sensação de que era um anjo que estava a escrever por mim. Lembrei- -me, então, que anjo quer dizer mensageiro. Quando estou a escrever, parece que estão a ditar-me e a mão a reproduzir.

Considera-se um predestinado?

Não. Isso até aumenta a humildade. Com o passar do tempo, há dois sentimentos que desaparecem: a vaidade e a inveja. A inveja é um sentimento horrível. Ninguém sofre tanto como um invejoso. E a vaidade faz-me pensar no milionário Howard Hughes. Quando ele morreu, os jornalistas perguntaram ao advogado: «Quanto é que ele deixou?» O advogado respondeu: «Deixou tudo.» Ninguém é mais pobre do que os mortos.

Despojamento, uma outra riqueza?

Quando uma pessoa morre, tira-se-

-lhe a roupa, objectos pessoais, o dinheiro, os óculos. Que vão vestir os mortos quando voltarem? Que dinheiro têm para comer quando voltarem? Morro, podem ficar os livros, mas os livros não são eu, que terei a boca cheia de terra e estarei no céu ou em parte alguma. Que diferença me faz? Quando voltar, com que óculos é que vou ler?

Como regressam os mortos?

E será que partem? Sou um homem religioso. Há um provérbio húngaro muito velho que diz: «Na cova do lobo não há ateus.» O nosso problema é se Deus acreditará em nós. Deus, porém, tem coisas incompreensíveis para mim. Acho que gosta muito dos tolos, porque não pára de os fazer. Mas, se calhar, o caminho de Deus terá tais profundezas que a gente não as entende. Tenho, sobretudo, a experiência das perdas. A perda de qualquer amigo é uma ferida que nunca cicatriza. A perda de pessoas de quem gostei, e que não são substituídas por nada, deixaram vazios que nunca serão preenchidos. Isso também ajuda a tornar-nos humildes.

Na desmultiplicação do narrador, em Eu Hei-de Amar Uma Pedra, todas as personagens se confrontam com perdas...

Dizem que os meus romances são polifónicos. Não são. É sempre a mesma voz que fala e gostaria que fosse também a voz interior do leitor. Ou melhor: essa voz não fala, nós é que a ouvimos.

Uma voz que se desdobra em vozes de muitas sombras?

Sombras, luzes. Gostaria que fossem vozes totais, para mim são vozes totais, porque trazem consigo carne, corpo. O drama é que a gente está a ler em folhas de papel. E, no entanto, nunca tive a sensação de fazer ficções.

O seu novo romance parte de fotografias. São o maior registo da memória?

Não acho que os romances sejam novos. Existem há muito tempo, à espera que seja capaz de chegar a eles. Em miúdo, conheci pessoas rodeadas de fotografias antigas. Perguntava quem eram aquelas pessoas, diziam-me ser o trisavô, todas pessoas mortas. Eu pensava: como podem estar mortas se olham para mim desta maneira, como se me conhecessem? Tinha a sensação de que as pessoas daquelas fotografias me compreendiam melhor do que as vivas. Naquelas fotografias amarelas subsistia a vida, o olhar. Na capacidade de transmissão de emoções e vivências, a fotografia sempre me fascinou. Nunca tirei uma fotografia, falta-me esse talento. Mas temos fotógrafos geniais.

Não tirou fotografias às suas filhas?

A ninguém. Da mesma maneira que nunca gosto de me ver fotografado.

Acha-se feio?

Nunca lidei bem com o meu corpo. Vejo agora fotografias de quando era bebé ou de há 30 anos, e era bonito. Quando tinha 18 anos, as mulheres metiam conversa comigo.

Em dado momento da sua vida, isso foi razão para o tornar vaidoso?

Não era importante. Importante era que as mulheres fossem bonitas. As mulheres sempre exerceram um grande fascínio sobre mim.

Sentiu falta de um elemento feminino entre os seus seis irmãos?

Não podia sentir, porque não sabia o que era o elemento feminino.

Havia a mãe, as avós...

As mães, os pais não têm sexo. A mãe era a mãe, e mulher do meu pai. Também não sabia muito bem o que era ser mulher do meu pai. Julgo que todos os miúdos vêem os pais de uma maneira assexuada. Eu via a barriga da minha mãe a crescer mas não sabia qual o mecanismo que fazia com que a barriga da minha mãe crescesse.

Acreditava que os bebés chegavam no bico de uma cegonha?

Comigo era diferente. O meu pai estava na Alemanha, vinha uma vez por ano e a barriga da minha mãe começava a crescer. Sabia que tinha alguma coisa a ver com o facto de o meu pai ter estado cá. Mas nunca os vi beijarem-se, não sabia muito bem como aquilo era feito.

Não se falava de sexualidade às crianças. Hoje, o próprio ensino dá-lhe alguma atenção. É melhor?

Não faço juízos de valor, não sou médico.

É médico psiquiatra...

Já não faço nada disso. Só escrevo palavras. Nunca analisei essa parte, só me interessava tentar entender. Se analisarmos, não entendemos.

Como se chega ao entendimento sem análise, sem crítica?

Por osmose. Quando se critica, estamos a julgar. Se julgarmos já não compreendemos, porque julgar implica condenar ou absolver. Acho que era Malraux quem dizia: «A partir do momento em que a gente compreende, deixa de julgar.»

Que tempo vivemos: o do julgamento?

Tenho uma vida um pouco especial. Estive recentemente na Roménia, um país que me encanta e me faz reaprender o que é a liberdade. Um país muito parecido connosco...

No aspecto da liberdade?

No da latinidade. Quando voltei, havia todas essas coisas provocadas por este espantoso governo que temos. Tudo o que se tem passado me dá vontade de rir. Nós nunca vivemos em democracia, tal como os EUA não vivem em democracia. A democracia implicaria um referendar constante das decisões, e isso não acontece.

Há eleições...

Vota-se de quatro em quatro anos, mas, entre esses quatro anos, não nos pedem opinião. O que se tem verificado em Portugal, a propósito da liberdade de imprensa, não passa de uma luta de poder igual a tantas outras. De uma forma geral, olho para os políticos com uma indulgência divertida, sejam de que partidos forem. Há pouco tempo, estava no estrangeiro, num encontro com cento e tal escritores, e ouvi falar de Portugal por causa do «barco do aborto». Comentava-se que um ministro nosso terá dito: O mar português é um mar com princípios. Foi um motivo de troça à minha custa, que não tinha culpa nenhuma.

Portugal é diferente dos outros países?

Claro que não. Nem somos piores. E temos uma língua espantosa. E um clima maravilhoso. Cada vez me seria mais difícil viver longe de Portugal. Gosto muito do meu país.

Costuma ler as críticas à sua obra?

Devo ser dos poucos autores que não lêem as críticas, sejam boas ou más. O que faço ainda é cedo para ser compreendido. Tenho a sensação que estou a escrever coisas maiores do que eu. É preciso deixar passar um tempo. Talvez daqui a 50 ou cem anos seja tudo mais claro. Se uma pessoa está à frente do seu tempo, isso provoca reacções contraditórias. Mas há críticos excelentes que iluminam zonas de sombra dos livros. É também preciso grande humildade para se escrever sobre o que se lê e não julgar-se um livro com a nossa chave. Temos de aceitar que há livros muito bons de que não gostamos e livros de que gostamos que podem não ser bons.

Prefere que a chave dos seus livros fique na posse do leitor?

A chave vem com o livro. Saber ler é tão difícil como saber escrever.

Há quem tenha dificuldade em entrar nos seus livros...

Para mim, os livros que escrevo são óbvios e evidentes. Ao lermos certos autores muito bons - estou a pensar no Conrad -, parece caminhar-se no meio do nevoeiro e, de repente, o nevoeiro começa a levantar-se e o livro fica totalmente claro. Quando, aos 20 anos, via um filme de Bergman, aborrecia-me profundamente.

A partir de que idade começou a entender Ingmar Bergman, considerado o cineasta da memória?

A partir dos 40, comovia-me até às lágrimas. Era eu que não estava preparado para ver aqueles filmes e notar o quanto de mim existia neles. Nós somos casas muito grandes, muito compridas. É como se morássemos apenas num quarto ou dois. Às vezes, por medo ou cegueira, não abrimos as nossas portas.

Quando na sua escrita suspende a frase, a palavra, deseja deixar portas abertas? Pretende ter o leitor como um interlocutor constante?

Fui compreendendo que tinha de pôr a prosa a respirar de uma outra forma. É também uma maneira de pontuar. O problema é como isso se traduz para outras línguas. Neste momento, na Rússia, estamos com problemas de tradutores de português; traduz-se a partir do alemão. O português, em muitos países, é como o esloveno para nós. Um país onde se traduz maravilhosamente é em Espanha.

Que imagem tem da língua portuguesa, falada por 250 milhões?

Na sua maior parte, as pessoas que conhecem o português em alguns países conhecem o português do Brasil, cujo léxico e musicalidade são diferentes. Julgo que o meu português coloca problemas específicos. Estou a lembrar-me do problema que foi para um tradutor expressões como alto lá com o charuto. Todas as línguas têm a sua idiossincrasia. Uma tradução acaba por ser uma fotografia a preto e branco.

Sente-se bem a escrever em português?

É a minha língua, não me imagino a escrever noutra.

Nos seus livros faz sempre uma visita à infância. É o património mais vasto e rico da sua escrita?

Queria que os livros tivessem todos os tempos da minha vida. Talvez a partir de uma certa idade estejamos mais atentos à nossa infância.

Estou a lembrar-me de Séneca, que diz: «Ama como se morresses hoje.» No seu caso, escreve como se pudesse morrer hoje?

Não quero nada morrer hoje. Estou a meio de um livro, não o queria deixar imperfeito. E queria viver mais dois anos para fazer outro, e mais dois para fazer outro, como se andasse a negociar a vida. Gostaria de ter mais dez anos para escrever. E se calhar, mesmo morto, a mão vai continuar a avançar.

Quando poderá o escritor ter a percepção de que deve parar?

A partir de certo momento, tudo começa a ossificar-se. Muitas vezes não temos essa percepção.

Tem palavras por meio das quais procure um significado absoluto?

Tenho aprendido mais a escrever com os poetas do que com os prosadores. Em poesia, pelo menos nos poetas que admiro, cada palavra tem um brilho próprio. Mas não gosto de dividir as coisas em romance, conto, novela, poema.

Convoca tantas flores para os seus livros... Fazem parte da sua natureza?

Vivo sem flores, não tenho flores em casa. Vivo com livros e quadros, a maior parte oferecidos pelo Júlio Pomar. Nunca tive bens materiais. Nem uso relógio. Posso fazer a mala e ir-me embora. Não estou agarrado às coisas.

In DN 20041109

A Morte é uma Puta

O escritor surpreendeu os portugueses ao revelar numa crónica que tinha sido operado a um cancro no intestino. Não se coíbe de falar sobre o assunto, até porque a morte é palavra habitual nas páginas dos seus livros, mas comove-se ao relembrar aqueles dias e o pós-operatório. Uma coisa é certa, saiu deste susto um homem diferente e com vontade de ser mais sincero e de outro amar.

A porta que dá entrada na garagem onde escrevia naquela tarde fica no fundo de um beco. António Lobo Antunes enterra-se num sofá preto e pede para começar a entrevista com um certo ar de vamos cumprir o combinado. No fim, dirá que nem deu pelo tempo passar e encaminha-se para a "tasca" onde pede ao empregado o habitual. Desta vez, só deu duas entrevistas para ajudar o lançamento do novo livro - O Meu Nome é Legião. Está a trabalhar no próximo...
De vez em quando ameaça que só escreverá mais dois ou três livros. Perdeu a vontade?

Não só não é isso que eu tenho vontade como tão-pouco é uma ameaça. Está muito mais relacionado com o medo de não ser mais capaz de escrever. Aparece a cada livro que acabo e pergunto-me se serei capaz de fazer um próximo. Ninguém que escreva a sério vai poder dizer isso. Também é uma espécie de negociação com a morte, deixa-me escrever mais um, mais dois, mais três... Gostava de ter tempo para escrever outro e arredondar o trabalho, é um círculo que ainda não está completo.

Quantos livros faltam para fechar esse círculo. Só mais um?

Gostava que fossem mais porque o círculo vai aumentando sem nos darmos conta. Eu gostava de viver mais duzentos anos mas é improvável que os tenha.

Sofre muito ao escrever?

Há instantes de intensa felicidade - às vezes sinto as lágrimas a caírem-me pela cara - e momentos de grande irritação porque num dia consigo fazer meia página e no noutro só três linhas. O material resiste, as palavras não chegam, o livro não sai. Normalmente as primeiras duas, três horas são perdidas, os mecanismos sensórios ainda estão muito vivos. Então, quando começo a estar cansado, as coisas começam a articular-se com mais facilidade. É como quando estamos a dormir e de repente temos a sensação de termos descoberto os segredos da vida e do mundo, mas sabemos que estamos a dormir. Lutamos para acordar e quando chegamos à superfície não temos nada, diluiu-se enquanto fomos subindo. Quando consigo um estado próximo dos sonhos é muito mais fácil trabalhar e só o tenho estando fatigado.

Já experimentou algumas substâncias para atingir esse estado artificialmente?

Nunca tomei drogas, nunca apanhei uma bebedeira na vida. Não bebo café, não me dá prazer. Acho que o único vício que tenho é fumar.

Portanto, é bem comportado?

Não é uma questão de comportamento, em casa dos meus pais não havia vinho à mesa, só água. Eram muitos filhos...

É normal os filhos romperem hábitos!

Não havia vinho à mesa da mesma maneira que a roupa passava de uns para os outros. Os meus pais deram-nos uma educação de grande austeridade, não tinham muito dinheiro.

Quando faz o julgamento da convivência com a vida acha que ambos se dão bem?

Nunca me pus esse problema, tenho tentado viver o melhor que posso. Fiz certamente muitos erros e continuarei a fazer - espero que menos - mas nós não fomos feitos para a morte, fomos feitos para a vida e sempre me custou ver o sofrimento alheio. Quando fazia muita medicina, não era só o sofrimento que custava mas a minha impotência para com ele. Acho que as pessoas não foram feitas para a morte mas para a vida e para a alegria.

Mas não há escapatória para a morte!

É mais simples do que se pensa. Este ano, tive um problema de saúde e sofri isso na pele, acho que o problema está ultrapassado mas foi um ano duro. E a minha atitude era sobretudo de espanto, e a minha preocupação era ter uma atitude digna e não cobarde. Vi pessoas com uma coragem extraordinária e aprendi com elas lições de vida, coragem e dignidade. As pessoas comportavam-se como príncipes perante a situação e eu pensava estou aqui com pessoas que são melhores do que eu, com uma imensa dignidade no sofrimento. Isso foi uma coisa que me comoveu muito e fez pensar que vale a pena viver entre os homens e com eles. Todo o sofrimento é injusto... Em nome do quê é que uma criança de três anos morre com um cancro ou uma leucemia? É muito injusto, qual a razão disso? Sempre me intrigou a razão deste sofrimento porque o do interior tê-lo-emos sempre. Estamos carregados de dúvidas e certezas e as perguntas que nos fazemos ficam muitas vezes sem resposta. Porque vivo assim, em que falhei e magoamos pessoas sem darmos conta com uma frase que para nós é completamente anódina. Julgo que o segredo é estarmos atentos aos outros mas frequentemente não estamos e, sobretudo, não reparamos que são diferentes de nós. Daí o problema de escrever, como colocar em palavras coisas que por definição são anteriores às palavras? Como tentar cercá-las com palavras? Há zonas em mim que desconheço, portas que nunca abri e que, no entanto, aparecem nos livros e provocam-me uma certa perplexidade ao querer saber de onde é que isto vem, de que profundidades nossas, que todos temos.

Por isso resguarda tanto a vida privada?

Ela não tem importância nenhuma, só a mim me diz respeito. Quando fui operado escrevi essa crónica sobre o cancro porque já havia tanto jornalista e gente à volta do hospital que resolvi ser eu a dizer: Tenho um cancro no intestino. Não me deu prazer nenhum dizê-lo e garanto que não me deu prazer nenhum tê-lo. O pós-operatório foi horrível e duro, felizmente tive a sorte de ter um grande cirurgião e de todos os que lá trabalhavam serem de uma grande delicadeza. Só tenho gratidão.

O cancro está controlado?

Está controlado, neste momento o que faço são revisões periódicas. Claro que pode haver uma surpresa - pode haver sempre! - mas até agora tem estado tudo bem. É óbvio que na véspera de uma revisão estou tenso e fico assim até saber o resultado mas também sei que se houver um problema o Henrique (o cirurgião) vai lá e resolve-o. Preciso de tempo, preciso desse tempo, preciso ainda de trabalhar.

Está a lutar contra a morte apesar dela estar sempre presente nos seus livros...

Espero que a vida também! É inútil lutar contra a morte tal como é inútil lutar contra a vida. É inútil porque a morte é uma puta - desculpem o palavrão mas é a única palavra que encontro. Quando o meu pai morreu, o padre que foi rezar a missa disse que detestava aquilo porque nós não fomos feitos para a morte. De facto não fomos... Há pessoas de quem gostávamos e que já não podemos tocar e ver e cuja morte foi tão injusta. Ainda no sábado fui a enterrar um camarada da guerra que morreu num acidente de automóvel. Foi muito comovente ver aqueles homens duros, que fizeram a guerra, a chorar como crianças. Eu chorei também, gostava muito dele e agora quando nos reunirmos ele não vai lá estar. E não faz sentido que o Zé não esteja. Eu tenho que viver pelo meu pai, pelo Cardoso Pires, pelo Melo Antunes, estão dentro de mim até eu acabar.

Como contrariar a morte?

Ela corre mais depressa do que qualquer um de nós e a única coisa que posso fazer para contrariar é escrever, a única duração que posso ter é a que os livros tiverem. E aborrece-me que seja assim, é injusto que seja assim, embora haja momentos em que todos nós desejamos morrer, de desânimo e solidão. Há momentos em que quase temos inveja dos mortos porque a vida nem sempre é agradável e fácil mas, agora depois de ver as pessoas lutarem no hospital, senti que muitos pensamentos que tinha eram indignos perante tanta grandeza.

Isso alterou a sua forma de ser?

Eu agora jogo com as cartas para cima, está tudo à vista porque é a única maneira de viver. Demorei anos a perceber porque o conhecimento da vida chega sempre tarde e pensamos que ocultando conseguimos dar boa imagem aos outros. Agora é: eu sou assim! Peguem, larguem, não posso ser amado pelo mundo inteiro embora a sede de amor seja inextinguível. |

Qual é a sua atitude perante Deus?

Existe um velho provérbio húngaro que diz que na cova do lobo não há ateus, por isso julgo que não existe quem não acredite. O nada não existe na física ou na biologia e quando se lêem os grandes físicos entende-se como eram homens profundamente crentes, que chegaram a Deus através da física e da matemática e que falavam de Deus de uma maneira fascinante. A minha relação é a de um espírito naturalmente religioso, cada vez mais, não no sentido desta ou daquela igreja mas porque me parece que a ideia de Deus é óbvia. Cada vez mais o é para mim. É um bocado como diz Einstein, quando afirma que Deus não joga aos dados.

Como é essa relação?

É claro que me zango com Deus porque permite o sofrimento, mas talvez os seus desígnios tenham tais profundezas que não atinjo. O sofrimento sempre me foi incompreensível porque nascemos para a alegria. A minha atitude em relação à religião é essa, não estou a falar de igrejas, estou a falar em relação a Deus e não acredito quando as pessoas dizem que são agnósticas ou ateias. Não estou a dizer que a pessoa não esteja a ser sincera, mas dentro dela e em qualquer ponto há algo... Uma vez perguntaram ao Hemingway se acreditava em Deus e a resposta foi às vezes, à noite.

Então à noite também acredita?

Acredito sempre mas a dúvida e pôr constantemente em questão é próprio da fé. Muitas vezes pergunto-me será que existe? É óbvio que sim.

Recentemente foram reveladas as dúvidas de madre Teresa sobre a sua própria fé...

Todos os teólogos as tiveram, Sto. Ambrósio dizia "não busco compreender para crer, creio para compreender"; Sto. Agostinho esteve cheio de dúvidas toda a vida e o Sto. António... O mesmo se passa em relação aos livros, pergunto-me será que isto está bem feito? Não é esta palavra ainda, será que é possível fazer aquilo que eu quero fazer ou será demasiado ambicioso?

O título do seu último livro vem da Bíblia?

Estava a passear no Evangelho e apareceu-me. Foi a primeira vez que fui à Bíblia, não tinha título nenhum, não sabia como havia de o chamar e de repente tropeço naqueles versículos do Evangelho de São Lucas e pensei: é isto.

A sua formação em Psiquiatria não lhe dificulta a convivência consigo próprio?

Se os psiquiatras compreendem a mente humana? Não, isso é a vida que nos ensina a entender os outros. Algumas das pessoas mais cultas que conheci eram analfabetas e algumas das coisas mais profundas que ouvi foram ditas por pessoas de pouca instrução. Uma mulher disse-me uma vez 'quem não tem dinheiro não tem alma'.

Quando está a escrever nunca se sente como se estivesse no divã a tirar coisas de si?

Eu nunca deitei ninguém em nenhum divã e se o fiz ao longo da vida foi para me deitar lá também, não era para ficar a ouvi-la falar. A sensação que tenho é que estamos na idade da pedra do conhecimento, do entendimento humano e das emoções. Não sabemos nada, eu pelo menos sei muito pouco. Isto só tem a ver com a humildade, não sou vaidoso, apenas tenho orgulho. Sei mais ou menos qual é o meu lugar enquanto escritor e o resto da minha vida não é importante, falar da minha vida privada não tem importância nenhuma, os livros sim podem ser importantes mas eu até acho que todos deviam ser publicados anonimamente, sem nome de autor. Isso eliminaria imensos problemas. |
JOÃO CÉU E SILVA
NUNO FOX (imagem)

In DN 20 de Setembro de 2007