Pelo meu intratável e malévolo esquerdismo genético, que evidentemente nos ex-esquerdistas é considerado um defeito de carácter (nos direitistas, antigos fascistas ou "situacionistas", pelos vistos não é, porque ninguém os acusa de estarem presos psicologicamente ao seu passado, bem pelo contrário podem ser democratas sem mancha e sem memória), sempre insisti nas campanhas eleitorais em que participei em visitar as fábricas, em encontrar os trabalhadores "à saída das fábricas" e em escapar ao interminável percurso pelas "instituições de solidariedade social", ou seja, lares de idosos cujo director era dos "nossos".
Poucas coisas mais deprimentes aconteciam do que ouvir um zeloso director a falar com uma velhinha - "sabe que a Mariazinha tem noventa e cinco anos e ainda canta, canta aqui ao senhor deputado, canta" - e desejar veemente que a terra se me abrisse à frente e enviasse a senhora Maria para o Céu, onde certamente está, e a mim para o Inferno, porque entre as suas piores penas não está assistir à humilhação alheia, de quem já não tem defesa do seu querer. Talvez a senhora Maria gostasse daquela última atenção e seja eu que esteja enganado, mas é por essas e por outras que abomino o populismo e não sirvo para certas coisas.
Voltemos à "saída das fábricas", lugar que se tornou maldito depois do dr. Menezes dizer que aí estaria em permanência. Nessas campanhas eleitorais passei por várias grandes fábricas, não só em dimensão como no número de trabalhadores que, já na altura, não abundavam no país, cuja desindustrialização fizera desaparecer muitas que a nossa sempre débil industrialização tinha feito. Todas essas fábricas, todas sem excepção, desapareceram nos últimos dez anos. Em tão poucos sítios é possível ver a história a fazer-se como se fosse um filme acelerado. Estava lá ontem, hoje já não está.
Eu, que sou portuense, sabia que poucas coisas se abatem mais rapidamente do que as grandes fábricas. No Porto, tudo o que era amplo espaço urbanizável nas décadas de setenta e oitenta estava no lugar vazio de uma grande fábrica, quase sempre têxtil, e as novas urbanizações para a classe média alta tinham o nome das fábricas como a William Graham na Avenida da Boavista. (ver foto) Desaparecidas as fábricas têxteis de Salgueiros, da Torrinha, das Sedas, para além das fábricas de fósforos e de cerveja, a cidade substituía as imensas construções fabris por apartamentos. Num artigo do Expresso, um dos primeiros escritos em Portugal sobre a salvaguarda do património industrial, ainda tentei que se preservasse alguma coisa da Fábrica de Salgueiros, um exemplar típico da arquitectura industrial então em ruínas, mas o efeito do artigo foi que o que sobrava foi deitado abaixo logo a seguir, não fosse haver alguém que se lembrasse de prestar a atenção à nova (por cá) concepção de arqueologia industrial e dificultasse o caminho aos bulldozers.
Esta semana, com o despedimento de centenas de trabalhadores da Yasaki Saltano de Gaia, recordei-me de outra grande fábrica desaparecida, a Clark"s de Castelo de Paiva, uma daquelas onde estive "à saída da fábrica". Por muito boa vontade que se tivesse em fazer política, distribuir uns papéis, falar com pessoas, na "saída das fábricas", a Clark"s era um sítio péssimo para o fazer. A saída era espectacular, mas muito, muito, rápida. Nos breves momentos que durava, um mar de raparigas, mulheres jovens e na meia-idade, o maior número de gaspeadeiras que alguma vez vi na vida, saía como uma mola das portas interiores e corria, literalmente corria, para os portões e desaparecia pelas ruas e caminhos, em motocicletas, algumas em carros. Dez minutos depois, não havia ninguém e os papéis dados à pressa no meio daquelas almas fugidias desapareciam com elas tão depressa como a noite se punha.
A corrida tinha uma razão de ser, iam para casa o mais cedo possível cuidar dos filhos e do marido, cuidar da casa, não tinham tempo a perder com políticas. Como na Yasaki Saltano, a maioria dos trabalhadores são trabalhadoras, mulheres, muitas bastante jovens, muitas com poucas qualificações e que abandonaram a escola antes do tempo, a face visível do "insucesso" e do "abandono escolar", para irem trabalhar e constituir família numa idade em que os mais abastados ainda se arrastam pelo 12.º ano ou pelos primeiros anos da universidade e vivem em casa dos pais. A atracção do emprego e da família, da "sua" família, marido e filhos, não é apenas motivada pela necessidade económica, mas sim pela procura de autonomia, de uma vida própria na teia demasiado densa das famílias ainda próximas da ruralidade. Castelo de Paiva não é propriamente o centro do mundo urbano e Gaia ainda tem muitas aldeias.
O desemprego é devastador para todos, mas é-o mais para estas mulheres jovens e de meia-idade. Não é apenas a sua condição económica, a sua condição de vida que é afectada, é também a sua autonomia como mulheres, a sua capacidade de terem no salário e no emprego uma vida e uma dignidade próprias como mulheres, num mundo em que esta afirmação ainda é crucial. Recebida a notificação do desemprego, passado o período da agitação, as notícias e contranotícias de que pode haver um plano de integração na fábrica ao lado, ou a cinquenta quilómetros dali, que pode haver um supermercado que as aceite prioritariamente, que a câmara vai cuidar delas, que os sindicatos vão obter uma melhor indemnização, etc., etc., chega uma altura em que acabou. Acabou mesmo, está desempregada.
Nesse momento, em que o dinheiro que se levava para casa começa a faltar, a mulher começa a fazer contas e a cortar nas despesas. E não corta no pão, no infantário, na luz, na casa, no telemóvel - há-de vir a cortar - corta nas suas despesas, nas despesas consigo. Vai menos vezes ao cabeleireiro, arranja-se menos, compra menos roupa, tudo coisas que parecem fúteis para quem tem tudo, mas que representam um caminho para uma menor auto-estima, um desleixo que pode vir a crescer com os anos, se passar definitivamente de operária a dona de casa. É um caminho invisível, um passo atrás em que ninguém repara a não ser as próprias.
Elas sabem o que é não ter emprego, ou ter que mudar para outro emprego menos qualificado, mais solitário, mais dependente, socialmente menos reconhecido. Elas sabem que podem fazer menos coisas sozinhas, com o seu dinheiro, sem prestar contas a ninguém. Elas sabem o que significa ficar mais dependente do marido ou dos pais, ter menos esperança para os filhos, desistir de coisas que achava até então possíveis: umas férias baratas no Algarve, um carro melhor, mais visitas às lojas do Arrábida Shopping, não para ver as montras, mas para entrar lá dentro e comprar aquela roupa para o "bebé", ou aquela blusa. E sabem que saem menos e vêem mais televisão.
O desemprego pode suscitar mil e uma discussões teóricas, e ser inevitável como "destruição criadora", como "reconversão" da nossa economia, como efeito de políticas erradas que assentam na ilusão de um "modelo social europeu" insustentável face à natalidade e à globalização, tudo isso. Também eu penso que a deslocalização das fábricas é inevitável e que muito tecido industrial que temos não resiste à realidade da economia actual e que, com a nossa baixa qualificação da mão-de-obra, não temos a plasticidade para encontrar alternativas que tornem "criadora" a "destruição" schumpeteriana. A trabalhadora da Yasaki Saltano que disse que ia aproveitar a "oportunidade" para completar o 12.º ano tem toda a razão e aponta o caminho, mas nem por isso deixa de ter todas as dificuldades e não é certo que possa vir a poder utilizar as suas novas qualificações.
Mas nem por não se ter qualquer solução a curto prazo, a sociedade, nós todos, devemos deixar de olhar para cada um destes desempregos colectivos de mulheres sem a preocupação de vermos e sentirmos a devastação que ele tem por trás, o atraso social que isto significa para Portugal. Estas mulheres não vão educar os seus filhos da mesma maneira, vão reproduzir melhor o Portugal antigo do que preparar o novo. Elas sentem que falharam, tinham algumas ilusões que perderam. Mas nós falhamos mais se não temos a consciência de fazer alguma coisa. Porque se pode, na acção cívica, no voluntariado, no mundo empresarial, na política, fazer muita coisa por estas mulheres. O que é preciso é vê-las e à sua condição e não as cobrir com o manto diáfano da inevitabilidade. A começar pelo Governo, que mais uma vez se vai voltar para o betão e não para as pessoas.
(Versão do Público, de 3 de Maio de 2008.)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário